2005-03-02

Jogo Viciado

(...)
Roubam-me Deus

Outros o diabo
Quem cantarei

Roubam-me a Pátria
e a humanidade
outros ma roubam
Quem cantarei

Roubam-me a voz
quando me calo
ou o silêncio
mesmo se falo

Aqui d'El Rei.


Zeca Afonso - Epígrafe para a arte de Furtar



O meu bisavô era natural de uma pequena Freguesia. Uma Freguesia pobre às portas de uma cidade rica. Uma Freguesia onde os homens desciam aos fundos da terra para tentarem arrancar o pão de um carvão cada vez mais escasso.

Era uma Freguesia de analfabetos e pobres, sem esperança nem futuro. Mas de gente honrada e lutadora. A muitos desses homens a minha família calou a fome dos filhos com um bocado de sopa. Até hoje, o meu bisavô, não foi esquecido.


Por acasos do destino, esta é um das Freguesias do Concelho onde trabalho. E, porque tenho lá um pedaço das minhas raízes, sinto um imenso orgulho por saber que foi das poucas onde Humberto Delgado ganhou, quando se candidatou à Presidência da República e assim afrontou Salazar.

Claro que não era suposto ganhar. Claro que foi "engano", já que, por todo o país, os votos de Delgado eram contabilizados para o candidato do Regime.

Mas havia um rapaz, um daqueles que comeram sopa em casa dos meus bisavós. Era bem novo ainda, calado. E todos os urubus fantoches do establishement achavam que ele estava do lado deles. Foi-lhe por isso permitido assistir à contagem de votos. E ainda nem bem estavam fechadas as contas e já ele berrava à janela "ganhámos!"

Não foi um grito em nada semelhante ao amorfo "ganhámos" de Sócrates. Não! Longe disso...

Era o grito de revolta do povo sob a forma de homem novo, berrando contra as ripas do velho regime que começava a tremer. Sofreu as represálias à moda da altura, como é óbvio. Mas lá, naquela Freguesia, Humberto Delgado ganhou contra quem viciava o jogo.

E a que propósito vem isto? Quase nada. Ou talvez por causa de muito. Talvez por me saber num país onde ainda há quem tenta viciar mesas de voto. Um país que ainda tem gente que pensa à moda antiga. Só que já não há, infelizmente, muita gente que arrisque a vida por um "ganhámos" que faça sentido e ponha o povo em festa antes da chegada dos acólitos da penumbra.

Em 1958*, ganhou uma Freguesia, perdeu-se um Homem. Um homem novo ainda. Um exemplo de coragem. Hoje, o PSD ganhou mais um deputado e não ganhou nada, que já há muito que tinha perdido tudo.

Para quê? Não faz sentido esta vergonha. Não faz! Pelo menos aos meus olhos. Mas se calhar isto sou eu que, no colo do meu bisavô, aprendi que o refrão do "Canto Moço", do Zeca Afonso – mas tinha de ser baixinho, muito baixinho, em surdina –, se cantava assim: "Vão parar à PIDE e vão parar à PIDE e vão, vão, vão, vão; Vão parar à PIDE e vão parar à PIDE e vão, vão, vão, vão"...

Claro que o meu bisavô também lá foi parar. Afinal era anarquista. Afinal dava de comer a quem não tinha medo de berrar.

Hoje, o meu bisavô deve ter dado uma volta zangado, muito zangado, no outro lado da vida...


________

*Obrigada, Duende

1 comentário:

Anónimo disse...

Mais Vozes

On : 3/3/2005 7:08:10 AM Caliope (www) said:

Ora bem...
Quem sai aos seus não degenera... LOLOL Anarquista dos tempos modernos...


On : 3/3/2005 9:46:30 AM duende (www) said:

Só uma pequena correcção. As eleições foram efectuadas em 1958. Fiquei curiosa. Podes revelar qual a freguesia?


On : 3/3/2005 12:08:42 PM Hipatia (www) said:

Não me sinto anarquista. Não no que a palavra encerra em termos de conteúdo político. Mas sou uma inconformada e isso talvez tenha mesmo herdado desse meu bisavô, o único que conheci.




On : 3/3/2005 12:10:16 PM Hipatia (www) said:

É verdade sim, Duende. Mas eu nunca fui mesmo muito boa para datas

Obrigada. Vou corrigir.

(Importas-te muito que te diga antes sem ser por aqui?)


On : 3/3/2005 12:14:22 PM duende (www) said:

Não me importo absolutamente nada. Até porque tenho outra coisa para te dizer.


On : 3/3/2005 12:16:10 PM Luis_Duverge (www) said:

Concordo contigo ... mas falta algo ainda. Hoje temos liberdade de expressão , mas quem me/ te/ nos ouve ? A independência económica é fundamental. Hoje acho que voltámos bem para trás na questão de mentalidades e ideologia. Repara nisto :
A minha banda favorita são os U2, agora repara em quanto tempo esgotaram ao bilhetes, e o preço dos mesmos.
Se alguém tentar reunir as mesmas pessoas para contribuirem com a mesma colecta para uma causa humanitária, seja ela qual for, nem 1% consegues. Eu sei que há dinheiros mal parados, mas ajudar objectivamente cada vez menos. Hoje a maioria das pessoas que lidera outras pessoas, não tem conhecimento, oprime o próximo de uma forma económica ... e as falências fraudulentas continuam. Bem podes gritar ...que eles comem tudo.
Beijo.


On : 3/3/2005 12:23:50 PM Hipatia (www) said:

No que toca à questão humanitária, às vezes também temos surpresas positivas. Estou a lembrar-me de dois casos em particular: a forma como este país se mobilizou para lutar, para não se calar, quando foi o caso de Timor e, há bem pouco tempo, pelas vítimas das convulsões deste nosso pobre Planeta lá na Ásia.

Só que - esses - foram casos demasiado mediatizados e talvez isso tenha feito toda a diferente. No quotidiano, somos todos tão egoístas que, as poucas vozes que ainda se erguem, perdem-se como gotas de chuva no mar.

Tens razão. Claro que tens razão. Os vampiros só mudaram de roupa. Agora vestem Armani, a maior parte dos dias e têm o dinheiro em nome do primo que vive na Suíça.

Mas eu recuso-me a calar-me e deixar-me vencer pela desesperança. Odeio discursos miserabilistas. Talvez por isso tenha detestado tanto ter meninos guerreiros a tentarem ser políticos. A polis somos nós. Andamos é demasiado esquecidos.


On : 3/3/2005 12:24:21 PM Hipatia (www) said:

ok, Duende. Vou abrir a janela


On : 3/3/2005 1:22:27 PM sharkinho (www) said:

Cuidado com as correntes de ar...


On : 3/4/2005 12:36:33 PM Hipatia (www) said:

Ora, Sharkinho. A Duende e eu somos umas fortalhaças. Não nos constipamos facilmente. Principalmente a Duende, que é uma mulher e tanto, capaz de levantar até um berlinde com a pontinha do pedante azul