2008-02-14

Distopia

aqui

E o desafiómetro é escreverem a vossa perspectiva do futuro, seja claro ou escuro como um garoto pedido ao balcão ou uma paleta de cinzentos como os dias que correm



Ora cá vamos nós! O que espero do futuro? Quase nada. Acho que o futuro terá um tom tipo "Stange Days", que até se passava na viragem do século passado para este (de que já se esgotou quase uma década) e, como se provou, não foi data que fizesse acabar o Mundo, nem os vírus informáticos fizeram parar a bolsa, nem os elevadores ou os nossos computadores pessoais, nem caíram aviões, nem nada de extraordinário aconteceu. Bateu a meia-noite e foram para casa. Bem, quase que foram para casa, que ainda tiveram tempo para o beijinho, remendar os arranhões e prestar declarações à polícia.

Suponho que espero um pouco mais do mesmo, num século que me parece ter nascido cansado dos exageros do século XX e em tom estafado tentará seguir em frente. Para já, prevejo que seja um século chato, em tom de retrocesso. Desde que Nietzche decretou que Deus estava morto, mais nenhuma verdade insofismável fez sentido. E agora todas as outras verdades tornam-se também questionáveis, desde as doutrinas políticas e económicas moribundas ou já enterradas, passando pelos grandes paradigmas que agora se questionam também, com a própria lógica da evolução darwiniana e as suas subdoutrinas em confronto com retrocessos medrosos em relação a releituras de uma suposta palavra divina que afinal também já não existe, ou não faz sentido que exista, tirando para quem quer continuar a controlar o mundo, controlando as pessoas e os seus valores. E a esperança vai-se com o dízimo para o pastor e prega-se o sermão como se se vendessem livros porta a porta.

Depois também não espero milagres contra os grandes males. Já não. O tempo em que tinha um cartaz pendurado na parede do quarto adolescente com a imagem do cogumelo atómico e a frase "will they ever learn?" ou o tempo em que achava que a Humanidade era capaz de deixar de se auto-destruir, passou com as probabilidades cada vez mais óbvias de um dia destes ter o mar debaixo da janela e só porque estou no 7º andar. Ou o tempo em que até acreditava que, se todos quiséssemos, se todos fizéssemos um esforço, então na Europa deixaria de se destruir comida e em África mais ninguém passaria forme. Ou que as focas bebés deixariam de ser mortas à paulada. Ou que as baleias iam ser salvas.

Não, o meu futuro está tingido de sem-esperança, tirando aquela mais evidente que me lembra diariamente que o Homem se habitua a tudo; ou que até o retrocesso para padrões que seriam bastardos de qualquer resquício de civilidade nem é sequer questionável, está já ai e, pior, já nos estamos a habituar a ele.

No séc. XXI – ou pelo menos nas décadas deste século em que terei possibilidades de viver - o Futuro já não será algo de excitante e o Progresso já não estará garantido. Já ninguém tentará correr rapidamente em direcção ao Mundo de Amanhã, porque o dia seguinte, se não for apenas mais do mesmo, estará antes vestido de medo e de frustração. E as guerras aparentemente enormes do passado serão travestidas cada vez mais de guerrilhas indistintas, criminosas e sujas, como se o cogumelo atómico só tivesse dado lugar às bombas sujas fabricadas com o refugo do século que acabou. E um dia destes, quando já estivermos todos bem enfiados na web, sempre em rede e cada vez mais sozinhos, talvez já seja obrigatório ter implantado o chip que permita a um qualquer Grande Ditador que prometeu a Salvação Eterna controlar as mentes e as vontades.

E ainda poderão vir as neurociências decretar o fim da fé do Homem, roubando-o por fim da alma ao substitui-la por uma qualquer versão de computador com pouco espaço disponível no disco e os programas desactualizados. Bless the mink for they will inherit the world passará a ser chavão. E suponho que em inglês, para que os "mink" sejam também "lazy" e, além do mais, possam acreditar que não têm culpa nenhuma. Não seremos mais como uma folha em branco à nascença. Nada disso! Dentro de nós tudo será mensurável por quem nos escarafuncha a mente e esmiúça os genes. E se está nos genes não temos culpa. E se não tivermos culpa, também não teremos a responsabilidade de fazer diferente. E ficaremos quietinhos, rebanhos a pastar atrás de um qualquer ecrã, com um chip bem implantado por baixo do couro cabeludo, à espera que alguém nos diga o que fazer e não fazer, o que é proibido ou permitido, o que é aceitável e o que não é, o que comer e onde comer, onde e quando foder, desde que um foder asséptico e que não seja subversivo, nem dê demasiado prazer, nem permita que as DST transtornem o orçamento dos serviços nacionais de saúde, se ainda continuar a haver disso.

Tom Wolfe disse um dia que este seria um Século Sonolento de ressaca do século XX. Lamento não concordar. Este parece prometer ser um século caótico, de medos e de retrocessos. E as pessoas não andarão sonolentas; andarão apenas comatosas. Só que até os rebanhos um dia se assustam e desatam a correr todos na mesma direcção alucinada. E, no rescaldo da passagem, não sobra normalmente mais do que destruição e pó revolvido.

E o meu futuro será também um pouco disso tudo, tirando que sou bem capaz de acabar viciada em "trips" de filmes feitos com a vida dos outros e enfiadas por uma qualquer engenhoca electrónica directamente no meu córtex cerebral. E talvez vire cada novo ano desse futuro a dar um beijinho, remendar as feridas e a prestar declarações à ASAE. Habituada ao dia à dia, sem esperança para além do minuto seguinte, sonhando ainda com os tempos que já passaram há muito em que acreditava que a minha geração ia mudar o Mundo e seria capaz da prometaica empresa de o fazer melhor. E o dia seguirá, mesmo que o mar me venha lamber a janela. E talvez compre um barquinho e vá passear para longe, se ainda houver um pôr-do-sol decente do outro lado de uma gigantesca nuvem de poluição ou se o buraco do ozono não nos tiver já roubado até esse pequeno prazer. E o rebanho irá comigo, ou eu com ele. Ou então apenas veremos todos essas cenas idílicas on-line ou mesmo "uploadadas" para dentro da nossa cabeça.

8 comentários:

Anónimo disse...

Apetecia-me mandar-te aqui dois ou três berros e dizer-te que não é nada disso.
Falta-me é veemência.

Hipatia disse...

Eu não sei mesmo se há veemência que nos valha. Ou sequer se ainda vale a pena gritar. E olho à volta e penso em como o populismo gratuito se vai tornando cada vez mais rasca e se entopem todos os sinais de fait-divers em lugar de se discutir o que realmente importa. Acabo a pensar que talvez um dia destes nos apareça um qualquer Grande Ditador orweliano. E a eloquência, essa veemência mesmerizadora, também pode ser mera cortina de fumo, uma cantiga de sedução. E os princípios deste século mostram-me que esse cenário é cada vez mais provável: viradas as costas às conquistas do século XX, fartos das consequências mais maléficas, temo que estejamos prontos para sermos enrolados num qualquer cenário de Admirável Mundo Novo. Pior, que o aceitemos já, protestando talvez, mas nada fazendo para o evitar. A preguiça e o individualismo são grilhetas atrofiantes.

Maria Arvore disse...

Primeiro, muito obrigada pela participação no desafiómetro. :)

Depois, concordo que a esperança é tudo o que não nos impregna a alma na actualidade, tanto mais que o retrocesso social a níveis do início do século XX só augura um futuro negro. E propenso a ditadores, como dizes, ou a salvadores da carneirada em que nos transmutámos.

Porém, como pessoalmente a esperança é a última a morrer e acredito nas aldeias gaulesas ;)acredito que o futuro será mau até ao ponto em que os humanos o suportarem e quiserem voltar a ser humanos. :)

Hipatia disse...

Sim, dai que tenha dito que um dia o rebanho desata a correr e leva tudo à frente. Mas não sei se será consequência da esperança; talvez antes consequência de desespero.

E não penso que, até lá, as mudanças sejam bruscas e, de um momento para o outro, o Mundo esteja completamente diferente. É por isso que gosto dos cenários da FC em que o Mundo é muito reconhecível, com algumas geringonças "novas".

As mudanças serão passo a passo, lentas e progressivas. É sempre assim o futuro, mesmo quando há revoluções. Ou retrocessos civilizacionais.

Gaivina disse...

Xissa! Deixas-me sem folego...

Hipatia disse...

Então porquê?

:/

Claire-Françoise Fressynet disse...

Acredito na força da natureza e
os efeitos adversos estão a causar grandes danos na reprodução humana.
Nunca,mas nunca partilhes a pastilha elástica (o que obriga toda a gente a mentir)
bjs,vou tentar jantar.

Hipatia disse...

Sim, Claire, acho que a natureza, quando permitiu a evolução humana, nunca esperou que este ser frágil, munido de um cérebro gigantesco e pouco juízo, se virasse contra ela e se transformasse numa praga que tudo destrói no seu caminho.

(bom apetite)