2005-03-05

As nossas feridas


Azul Posted by Hello


No “Bleu”, do Krzysztof Kieslowski, a personagem da Juliette Binoche, Julie, é uma viúva a tentar levantar os cacos em que a sua vida se transformou e que vão muito além dos cacos finais causados pela morte acidental do marido. A cena em que ela seduz o amigo é exemplo disso: um experimentar as sensações, um tentar descobrir se ainda está viva. Não é uma viuva chorosa, mas parece estar morta por dentro devido a todos os sopapos que a vida já lhe deu. Volta-se para si, portanto, na busca do que ainda existe ou pode vir a existir. Será nessa busca interior que irá, ou não, encontrar a redenção. Uma casa nova e anónima, uma rua anónima, vizinhos anónimos e a busca de um caminho novo, livre de todas as memórias e mágoas. Em solidão. Porque isso também faz falta e não será, nunca, motivo suficiente para qualquer epíteto de louco.

É tão fácil quem nunca viveu uma perda violenta e extemporânea lançar as pedras e esquecer os telhados. Porque ainda não se chegou a compreender que há dores que não passam, há mágoas que não têm cura, há um acumular de dores que nos fazem remeter para nós, para que as nossas feridas possam ser lambidas a sós, levando todo o tempo necessário, sendo que esse tempo possa ser a vida inteira...

Muitos de nós já sentimos essa perda, muitos de nós já nos refugiamos no nosso anonimato para lamber as nossas feridas levando o tempo que julgamos necessário. E tentamos recomeçar de novo. Às vezes, conseguimos em pouco tempo. Outras vezes, temos os nossos mortos dentro de nós e limitamo-nos a disfarçar as dores em segredo. Não somos bichos. Somos gente. E os nossos mortos são a nossa história e deveriam ser respeitados e guardados com carinho. Uma parte de nós.

1 comentário:

Hipatia disse...

On : 3/5/2005 5:33:02 PM sotavento (www) said:

"Fazer de cada perda uma raíz e, improvavelmente, ser feliz." :)


On : 3/5/2005 6:08:27 PM vague (www) said:

Na mouche. Bingo.
No entanto...não achas que seria bom para nós termos 'o dom do esquecimento'? (esta foi uma expressão preciosa que li não sei a q escritor)
A memória pode ser avassaladora; Tanto no bom como no mau...


On : 3/6/2005 8:27:11 AM Hipatia (www) said:

Bonito, Sotavento. Quem disse?




On : 3/6/2005 8:30:41 AM Hipatia (www) said:

Tinha andado a ler a Azulinha e a questão da eutanásia, Vague. Respondi por lá, como consegui. Depois, lembrei-me que também eu tenho uma palavra a dizer sobre isso aqui na minha casa. Estão ai as minhas palavras

Quanto à pergunta que me fazes... não! Nem sequer é por ser qualquer coisa tipo "Memento" (viste o filme?). É mais complicado ainda. Eu acho que somos verdadeiramente imortais na memória que conseguimos deixar nos outros. E que os outros são verdadeiramente imortais se os preservarmos na nossa memória. Mesmo quando dói recordar. Ou, se calhar, exactamente por isso.


On : 3/6/2005 3:19:32 PM sotavento (www) said:

Desculpa, esqueci de mencionar: José Mário Branco!...


On : 3/6/2005 6:07:42 PM Caliope (www) said:

Um sorriso em cada dia é já uma conquista. E dar valor a pequenas coisas e sorrir por termos a felicidade de as podermos contemplar também nos traz paz.
Eu penso que é preciso uma grande coragem para viveres a vida com tanta garra. Afinal, há por perdas menores há quem perca a esperança de ser feliz e tu não és um desses casos.
Tenho noção que não consigo compreender o que sentes, mas deixo-te um beijinho com muito carinho.


On : 3/6/2005 6:35:43 PM Hipatia (www) said:

Obrigada, Sotavento


On : 3/6/2005 6:37:17 PM Hipatia (www) said:

Nunca vou desistir de viver. Viver é maravilhoso. Vamos incluindo as perdas na nossa história e resistindo. Resistindo o suficiente para continuar a encarar a vida com um sorriso.

E isto vale para toda a gente.

Obrigada pelo que disseste, Caliope


On : 3/6/2005 7:48:39 PM 1poucomais (www) said:

Que belo texto, Hipatia. O lamber das feridas que demora o seu tempo; o procurarmos sentir-nos vivos, mesmo que seja agindo de forma pouco habitual em nós; o lento incorporar da dor em nós, aceitando-a e deixando-a, pouco a pouco, deixar de doer...
Um beijo para ti.


On : 3/7/2005 11:34:36 AM Hipatia (www) said:

Obrigada, Zu

(É de mim ou, este fim de semana, o ambiente andou um bocadinho pesado em alguns espaços, quase de forma contagiosa? Talvez por isso o novo desafio )


On : 3/9/2005 7:16:27 PM 1poucomais (www) said:

Acho que eu fui a culpada - mas quando me apetece falar de uma coisa no blog, falo e pronto.
O desafio qual é? O que eu sugeri no Charquinho?


On : 3/10/2005 3:13:04 PM Hipatia (www) said:

Agora já tens também "esse" desafio