Almada Negreiros - Maternidade
A minha mãe não era suposto ter nascido. Na verdade, se naquele tempo a minha avó pudesse ter escolhido, a minha mãe não nascia. Tinha sido antecedida por duas meninas que não chegaram a completar um ano de vida, dois gémeos nado-mortos e um tio que nasceu de sete meses e só sobreviveu porque a minha avó o meteu numa peúga velha e o deixou ao borralho. Eram demasiadas mortes, mesmo num tempo em que as famílias estavam habituadas a conviver com a morte e os funerais dos "anjinhos" eram o comum em lugar da excepção. Mas, tanto filho morto depois e um que mal se tinha salvo, a minha avó achava que três filhos vivos e de boa saúde era mais do que o seu quinhão. E até já tinha uma rapariga para a ajudar a tomar conta de três homens. Estava bem, não precisava de mais. Mas engravidou da minha mãe. Suspeito que não terá ficado particularmente contente. Era o tempo do pós-guerra e por cá passava-se fome. Mas que fazer? Naquele tempo também não havia muito o que fazer. Era vontade de Deus? Seria a vontade de alguém, por certo, mas duvido que o meu avô acreditasse que Deus tivesse alguma coisa a ver com o assunto...
A minha mãe nasceu magra e ossuda, com ar sôfrego, suponho que um pouco zangada com a vida. Foi uma criança magricela e, mesmo depois de duas filhas, continuou magra e seca, até a menopausa - que não perdoa a nenhuma de nós - lhe ter amaciado um pouco as formas. Mas ainda é magra e despachada, fazendo o que pode e o que não pode, sempre a queixar-se, mas sem nunca deixar de fazer. Vai ser, provavelmente a vida toda, uma pessimista, uma preocupada. Até hoje, quer que lhe telefone cada vez que chego a casa, só para dizer que cheguei bem. Tem medo de não me conhecer todos os amigos, para poder tirar a cada um as medidas à maneira dela. E, mesmo quando está contente, a minha mãe nunca parece feliz. Carrega sempre nos ombros o peso do mundo de preocupações que ela própria constrói e tem a mania que, se não meter o bedelho, nada fica bem feito.
Arranjar um presente para a minha mãe é sempre uma dor de cabeça: nunca precisa de nada, nunca acertamos com nada, nunca é o que queria de facto. Cada vez que chega próxima qualquer data propícia a presente, cá em casa há três desgraçados em crise existencial. A minha irmã e eu já aprendemos a rir-nos com o assunto, mas o meu pai, coitado, fica realmente em pânico. E dá connosco em doidas, arrastando-nos para apreciações de possíveis presentes atrás de outros possíveis presentes. Ultimamente, tem acertado, verdade seja dita: dá-lhe jóias. E a minha mãe gosta de jóias, apesar de quase nunca as usar. Aliás, conhecendo a minha mãe, acho que as deve estar a guardar em algum lado, catalogadas por data e já com a indicação de qual de nós fica com o quê, depois de ela morrer, que é para ninguém se zangar com as partilhas.
A minha mãe tem um nome que não gosta. Bem, acho que, como em relação a tudo o resto, limita-se a dizer que não gosta. Tenho cá para mim que até nem achará mau de todo. Na verdade, a coitada da minha mãe esteve para se chamar Otilinda. Isso mesmo: Otilinda. Com os dois "i". Era o nome da senhora que esteve para ser sua madrinha. Mas, como já tinha sido madrinha das duas Otilindas que não chegaram a um ano de vida, a minha avó resolveu trocar as voltas ao destino trocando de madrinha à filha. E talvez tenha dado certo, que a minha Tia-Avó Alice, que ainda está viva e de saúde, é a madrinha da Maria Alice a quem eu chamo mãe. E que também está viva e de saúde. Aliás, hoje fez mais um aninho e até parece que gostou dos presentes e da festa. Está com um ar mais ou menos feliz e já me avisou para lhe ligar quando chegar a casa...
23 comentários:
os peixes são uns "chatos" sempre preocupados com o mal dos outros.
os peixes transportam todas as preocupações do mundo, vá-se lá saber porquê.
Há mães que disfarçam melhor que outras.
uma dasminhas gatas chama-se Alice.
a tua mãe é uma graça, dá-lhe um beijo por mim;-)
Acho que 90% das mães são assim mesmo... :)
Um beijinho grande de parabéns para ela.
Parabéns à mãe Alice, apesar de não a conhecer... e até faz anos 8 dias antes da minha, que também não gosta do nome que tem e que me liga aflita se eu não telefono quando chego a casa...
muitos parabéns para ela:)
para ti um beijo grande:)
Um beijo daqui para a Maria Alice :)
Sempre lhe podes comprar um carro que não ultrapasse os 80 à hora, assim, ela podia andar sempre de prego a fundo ;)
Olá!
O post chamou-me a atenção... Talvez por eu ser Caranguejo, aquela "raça" imensamente ligada à família...
Não posso comentar muito, pois este é um post com imensas referências concretas que desconheço... Poderia dizer apenas "lugares comuns" e isso não me apetece.
Mas gostaria de voltar aqui e ir sentindo que vos vou conhecendo um pouquinho mais...
Fiquem bem
Hipatia,
;))))
Olha lá, tu já ligaste a dizer que chegaste bem?... ;)
Muitos parabéns à tua mãe! :)
A minha faz anos no próximo domingo mas eu já estou acostumada há muitos anos a ter uma filha a quem chamo mãe. ;)
A minha continua a ligar-me todos os dias desde que fui embora, há 17 anos. Eu rezingo e reviro os olhos mas se há um dia que não liga pesa-me logo a falta. Parabéns à tua mãe, goza-a o melhor que puderes.
Acabamos por nos rever todas nesse modelo de mãe. Mas ainda bem que as temos!
gostei de ler o teu texto de amor.
Parabéns!
Penso que, a pensar em todos os "peixes" que conheço, há de facto uma tendência para serem mais pessimistas e preocupados, J.P. Mas até nisso a minha mãe exagera ;-)
O pior, Cruzeiro, é que me cheira que há coisas que são contagiosas: já por várias vezes me apanhei a pedir a alguém para ligar para confirmar que tinha chegado bem a casa. Parece que filho de peixe, peixinho é... ;-)
Vou ficar à espera para ver a tua festa de anos à tua mãe, Deep. E para lhe dar os parabéns, claro :))
Obrigada, Cristina :) Beijinho
Tu conheces a figura, não é, miga? E olha que essa do prego a fundo... eheheh
Simpa, bem vinda :) Nunca conseguimos comentar muito mais do que lugares comuns, em posts como este. Mas esses lugares comuns também sabem bem ler :) Volta sempre e comenta quando e como te apetecer.
Não liguei, não, Maria Árvore. Cheguei a horas pouco próprias ;-) Mas isso não me impediu de ouvir no dia seguinte, quando retribui as várias chamadas que não tinha ouvido na véspera :)))
O estranho é como o comportamento das mães nos condicionam. Conforme os anos vão passando pela minha, mais maternal me sinto em relação a ela. Claro que a Maria Alice não gosta :)
Eu tento aproveitá-la o melhor que sei, Uxka. E é assim que tem de ser, não é? Afinal, ninguém é eterno, por mais que nos custe pensar isso em relação a quem queremos bem :)
Mãe é mãe, certo, Fausta?
Obrigada :)
Obrigada, Sofia
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eu gosto muito do nome alice.
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e percebo bem o "trauma" da procura da prenda para a mãe... (risos)
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Será que existe mesmo um "figurino tipo" para as mães, Corpo Visível? E, a haver, quantos destes gestos não estamos nós condenadas a repetir?
Sabes, eu não uso o meu primeiro nome. Não gosto dele. E tenho uma mania de pedir aos amigos para confirmarem se chegaram bem a casa... eheheh
Mais Vozes
Parabéns à tua Mãe. Mulher que aprendeu a dar a volta e surpreender o destino.
Folha de Chá | Homepage | 03.07.06 - 11:38 pm | #
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Obrigada, Folha de Chá
Hipatia | Homepage | 03.08.06 - 12:28 am | #
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