2006-03-19

The Tramp


aqui


Um bigode pequenino, um casaco apertado, umas calças largas, uns sapatos enormes, uma cartola estafada. Um olhar cândido e um sorriso. Um corpo franzino. Ai está: the tramp. Silencioso, sempre silencioso. Tão silencioso que recusou o avanço do sonoro durante mais de uma década. À sua volta, todos falavam já. Mas o pequeno vagabundo, o mais pobre dos pobres, não enchia os seus filmes com o som das palavras. Enchia-os de música. Música belíssima, para enquadrar cada sentimento com a expressão magnífica que não necessita de tradução. Tão grande a emoção que se lê na ligeireza dos corpos, na profundidade dos olhos, na gentileza de um perfil. The tramp. Charlie.

Charlie Chaplin apresenta-nos uma das primeiras vozes discordantes sobre as venturas do progresso. O pequeno espezinhado que nem um cigarro pode fumar sem que, em grande écran, lhe surja a imagem do patrão, qual Big Brother, remetendo-o de volta para o seu trabalho de rotina, a prisão dos gestos repetidos até se transformarem em reflexos espasmódicos, uma doença. E os ricos ficam mais ricos e o pobre vagabundo, rodeado de muitos pobres vagabundos de uma época de recessão, enfrenta a miséria maquinizada. Um senhor, tão grande que enfrenta a fome e a prisão, que se enfrenta a ele mesmo no ring de boxe, numa coreografia de murros contra o destino. O destino da pobreza ao toque do gongo. Não por ele: para arranjar dinheiro para a sua amada. No fim ela vê. E vê-o a ele, ainda que, mais do que os olhos, seja o toque da pele que reconhece, enquanto olha para aqueles imensos olhos cheios de pena, de dor e de esperança. Em silêncio ainda. E a música por trás. O vagabundo que parte sempre a caminho do destino, com uma bengalada no ar. Mais vagabundo hoje do que nunca, comendo atacadores para mitigar a fome, sem perder a esperança num novo dia.

O bigode. O pequeno bigode que abandonou depois de muitos anos. Matou-o com o som, levou-o apenas para um filme ainda, numa caricatura visionária ao que vozes endoidecidas do outro lado do Atlântico prometiam ser a redenção da raça. Será que Hitler alguma vez viu "O Grande Ditador"? Será que se reconheceu no ridículo da figura embigodada que dança aos pontapés ao mundo?

E os olhos. Grandes, aguados, cheios de ironia. Mas também cheios de uma vontade de pôr no celulóide o melhor de si: a criança que sobreviveu à fome, mas que não soube sobreviver à abundância, transporta para o mundo dos sonhos a esperança que perdeu algures. Os olhos estão lá ainda. A preto e branco. Claros, esclarecidos, cheios de fome por um mundo que não compreende ou, talvez, compreenda bem demais. Ficam em close-up, encarando o seu amor, ao som de música. Bela música. Música iluminada que nos enche de promessas de um dia, um qualquer dia, que será melhor.


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Não sei se querias realmente um texto, mas sou incapaz de resistir a um bom mote.


7 comentários:

deep disse...

Charlie Chaplin ficaria orgulhoso e embaraçado talvez com este teu texto. É uma justa homenagem à personagem e ao homem que lhe deu corpo, que eu nunca consigo dissociar...

Hipatia disse...

"I did not have to read books to know that the theme of life is conflict and pain. Instinctively, all my clowning was based on this." Charles Chaplin

Era imperfeito, tinha mesmo demasiados defeitos enquanto homem e por isso mesmo foi atacado. Mas, ao mesmo tempo, tinha aquele golpe de genialidade que raramente se encontra. Às tantas exactamente porque era demasiado imperfeito.

Celebro o palhaço, mas celebro também o autor, dos textos e das músicas. Não lhe chegava ser brilhante apenas à frente das câmaras, não é?

Sabias que lutou contra o sonoro não porque tivesse uma voz feia - como tantos outros - mas antes porque achava que pelo gesto todos se podiam compreender, não importando língua, raça ou credo?

Maria Arvore disse...

Que texto especatacular sobre Chaplin! Bravo! Bravo! :))))9
A mostrar que ele era uma homem atento ao mundo onde vivia. A mostrar que muito antes de Marcel Marceau, Chaplin provou que o corpo é o melhor contador de histórias e a mímica a única linguagem universal. :)

Hipatia disse...

"I'll be loving you eternally
With a love that's true, eternally
From the start, within my heart
It seems I've always known
The sun would shine
When you were mine
And mine alone
I'll be loving you eternally
There'll be no one new, my dear, for me
Though the sky should fall
Remember I shall always be
Forever true and loving you
Eternally

Though the sky should fall
Remember I shall always be
Forever true and loving you
Eternally"

Esta é a letra que Chaplin escreveu para a banda sonora do "Limelight" (chama-se "Eternally") e que deixei a tocar no post. Chaplin ganhou em 1973 o Oscar com esta canção, apesar do filme ser de 1951 (é também o filme onde contracena com outra lenda, de que poderia ter feito um post muito parecido: Buster Keaton), mas em 51 os americanos achavam que Chaplin era comunista...

Eu sou fã de filmes antigos. Sou fã de Chaplin, de Keaton, da Paulette Goddard, de Hitshcock, Orson Wells, do film noir... e poderia dizer, como disse Chaplin, "I'll be loving you eternally" por uma magia que nunca mais será possível recuperar.

Miguel Horta disse...

Chaplin, fez-me chorar várias vezes...
Também, porque, às vezes rimo-nos porque nos doi....

Hipatia disse...

A mim também. Parecia que tinha sempre tudo a desfavor. Mas as lágrimas nunca se alagaram em dor; antes em ternura e esperança. Era um dom. E por isso escolhi a música que está no post: choramos junto com os violinos pelo pobre palhaço envelhecido que ainda nos consegue fazer gargalhar.

Beijo

Hipatia disse...

Mais Vozes

tu guarda-me este texto para o concurso )
mrf | Homepage | 03.19.06 - 10:20 pm | #

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É teu para o usares
Hipatia | 03.19.06 - 11:40 pm | #

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Tudo o que é bom.....Salta à vista!
Gaivina | 03.20.06 - 12:09 am | #

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Charlie Chaplin era mesmo muito bom

;P
Anonymous | 03.20.06 - 12:18 am | #

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Aquela coisa dos pés para o lado associada aquela personagem trás um alivio á minha vida que nem queiras saber. O homem não era perfeito, é sabido, mas duvido que exista algum boneco que se lhe possa comparar
frogas | 03.20.06 - 2:50 am | #

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Difícil mesmo encontrar-lhe paralelo. Os génios são sempre a nota dissonante, não é?
Hipatia | Homepage | 03.20.06 - 6:44 pm | #