2004-09-14

Memória

A vida descostura, o homem passa a linha, a corrigir os panos do tempo.

Mia Couto, in "A Adivinha"



Conta-me.
Conta-me o que se calou ainda.
Conta-me a memória, os sorrisos, a doçura.
Põe a música certa a tocar e conta-me.
Conta-me o sentido, o racionalizado.
Conta-me das histórias, dos equilibrismos.
Faz-me um desenho, uma pintura.
Diz-me como estava o céu,
como brilhavam as estrelas,
como já se ia embora Vénus
e a aurora raiava o negro de rosas e amarelos.
Diz-me como foi o dia,
aquece-me desse mesmo sol.
Conta-me das metamorfoses, dos crescimentos,
dos pés já doridos, dos sonhos acordados.
Conta-me.
Não esqueças nem um pormenor,
um pensamento, um fio.
Conta-me.
Preenche cada espaço, soletra cada letra.
Não te enganes nos ondes,
nos quandos, nos porquês.
Conta-me.


Recorda, agora, memória.
Conta-me tudo o que já começo a esquecer.

2 comentários:

Anónimo disse...

Está bem, eu conto.
Hoje vi uma bailarina a dançar na ponta de um grito.


corpovisivel.blogspot.com

Hipatia disse...

Acho que a vi também. Estava a jogar à cabra-cega com as estrelas :)