2004-09-07

Que nos baste

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.


José Saramago - Na ilha por vezes habitada


Somos um milagre e esquecemos como a vida é, em si mesma, um acaso, um lampejo de génio da natureza, uma anomalia.

No gigantismo do Cosmos, uma galáxia perdida. No recôndito dos seus braços exteriores, uma pequena estrela sem nada de original. À sombra dessa estrelinha, um pião azul e branco, ferro, rocha, poeira... Uma ilha habitada.

Erguemos os olhos para o veludo gelado e estéril dos céus e sonhamos não estar sós. À espreita, à escuta, procurando o tal contacto que pode nunca chegar. Utopias feitas contra a solidão de bicho gregário que elabora deuses e quer ser imortal.

E sonhamos caravelas novas em rotas para o infinito, enquanto a casa se faz prisão e o azul nos tortura os olhos de mocho que só sabem sonhar o impossível.

Frágeis. Únicos. Improváveis.

Não somos mais que pó. Pó de estrelas que se perdeu no lugar mais ermo. E se fez energia, movimento, reacção. Acaso, genes, enganos evolutivos que se provaram certos. Vida.

Que nos baste...

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