2009-02-19

Da procriação como argumento

Já que o coito - diz Morgado -
Tem como fim cristalino,
Preciso e imaculado
Fazer menina ou menino;
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca,
Temos na procriação
Prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou - parca ração! -
Uma vez. E se a função
Faz o órgão - diz o ditado -
Consumada essa excepção,
Ficou capado o Morgado.

Natália Correia


De cada vez que ouço um gajo (é quase sempre um gajo, não sei se já repararam) a invocar o argumento da procriação contra o casamento de pessoas do mesmo sexo (como antes fizeram contra a despenalização da IVG), passo-me! E talvez seja defeito meu, mas tenho sempre vontade de perguntar a essa gente se é capaz de dar acordo de cada espermatozóide produzido. Será que sabem onde foi parar cada um, desde que começaram a ter força nas mãozinhas para baterem umas punhetas?

Depois, olho à volta e vejo que a maioria das pessoas vai optando por um, no máximo dois filhos. Há muito que já não serve uma sardinha para alimentar um batalhão e agora os putos já nem são precisos para empurrarem o arado. Também deixaram de morrer cedo, coitadinhos, naqueles velhos tempos em que todos os dias badalavam os sinos pelos anjinhos. Agora nascem e crescem e vão à escola e dão despesas e exigem cada vez mais tempo, disponibilidade, dinheiro. No país real, os filhos evitam-se para que venham apenas os desejados e não todos aqueles só desejados por Deus Nosso Senhor (por falar nisso, que se passaria com o sistema reprodutor do S. José?) Ora, com tanto pouco filho a nascer, não há como não me lembrar sempre do soneto da Natália Correia: se o Morgado só tinha um filho, então o Morgado estava capado. Isso ou impotente, que acho que também servia. E lá se vai a lógica da procriação!

Além disso, eu conheço homossexuais com filhos; e lésbicas com filhos. Mas conheço muitos mais heterossexuais de ambos os géneros que nunca tiveram filho algum. Aliás, eu não tenho filhos. Será que entro no grupo dos rotos pecadores, destruidores da espécie (às tantas também da raça) por não foder como um coelho (oh caraças! o coelho era dos outros!) e parir como um rato? E, já agora, que ando eu a fazer aos meus óvulos, coitadinhos, a deitá-los fora todos os meses?

Mas o corolário é mesmo a treta da "procriação no seio da família". Cada vez que ouço, até me arrepio. É que foder e ter filhos há muito que (já) não obriga a casar. Aliás, nunca obrigou, nem quando o nome do pai aparecia substituído por um asterisco ou a palavra incógnito no BI, ou os senhores abades criavam um harém de afilhadas. E o casamento tradicional até pode estar em crise há muito, mas isso nada tem a ver com orientação sexual. De figura única para desenhar o núcleo familiar, passou a conviver com variadíssimos tipos de organização dessa mesma família, em diferentes combinações, e nem por isso deixam de aparecer filhos e de serem criados filhos e de haver uma família de facto. Pode ser diferente, mas funciona e tem-se provado viável. E, para muitos filhos, acaba por ser a opção mais saudável, bem melhor do que quando tinham de conviver com pai e mãe agrilhoados a um casamento acabado, aos gritos um com o outro, enquanto se mutilavam emocionalmente deixando as sobras para as crias.

8 comentários:

PreDatado disse...

Se era para não teres filhos devias era ter ido para padreca, sua Morgada do caraças. Razão tinha a Natália, não truca-trucas e só ovulinho sanita abaixo. Pecadora!

(fartei-me de rir com as ceroulas nas camélias :) :) :) )

mfc disse...

Há discursos bacocos que tenho dificuldade em entender e já não tenho sequer paciência para ouvir.

Que se fodam, sem que isso os leve para o Inferno!
Apenas que se fodam...

Maria Arvore disse...

Às tantas, tu queres ver que a Sagrada Família usava métodos anticoncepcionais?... ;)

Sobre estas almas que brotam estes discursos sobre a procriação gostaria que lembrar que a tradição nacional, pelo menos desde os tempos dos Descobrimentos, é as crianças serem criadas por uma família de mãe ou quanto muito, por um casal de mãe e avó. ;)

I. disse...

Vá, todos juntos:

"every sperm is sacred" e por aí fora. Está tudo explicado na primeira cena do Sentido da Vida (Monty Python, what else?)

Agora a sério, eu também devo ser uma freak. E por esse argumento, não posso casar (a não ser que a gata conte como prole. não? olha, dá-me menos despesa e mais alegrias, às tantas... ui, herege!).

Sinceramente, conheço tanta família dita tradicional que é mais difuncional que sei lá o quê, para quê tanta exigência quanto às adopções? Sabes que as senhoras da SS (segurança social) têm tais padrões de exigência face a um potencial adoptante - que seja um pai/mãe perfeito, em suma - que a seguir-se tal forma de pensar já se tinha esterelizado compulsivamente metade da população. Não há famílias perfeitas. E mais vale ser adoptado por um casal gay que ir parar ao psicólogo aos 10 anos porque se descobriu que o pai (biológico) é gay, e por isso é que papá e mamã se divorciaram (verídico, amiga minha).

Deixem lá o pessoa casar. E contra bem entenderem.

Hipatia disse...

Não truca-truca, Pre? Oh caraças! Mas olha que eu não fui para padreca (e mesmo entre os padrecos, tenho sérias dúvidas, que também devem ter desperdiçado muito padrequinho, lol)

Hipatia disse...

Eu também, Manel. Pior, tenho sempre sérias reticências sobre a sanidade alheia quando se põem a medir a normalidade dos outros. E quando usam a treta da procriação como desculpa, então é que os imagino sempre uns completos alienados. E nem é só o que se fodam; é também o que fodam. Quem fode anda normalmente demasiado bem disposto para ter que se preocupar com a procriação da vizinhança.

Hipatia disse...

Eu cá, que nem sequer tive a cabeça regada à nascença ou em qualquer outro momento da minha vida, acho que tenho toda a liberdade para dizer que o princípio do erro é tentarem fazer-nos acreditar numa sagrada família em que o S. José ficava a seco a criar o filho alheio. Da mesma maneira que acho muito pouco provável que o filho tenha morrido virgem. Deve ser por isso que acho sempre as histórias da procriação ainda mais inverosímeis do que as histórias da carochinha.

Tens razão: num País que costumava exportar gajos para a guerra ou para a emigração, o que não chego a entender é porque apenas o culto à virgem floresceu, que o País bem que precisava ter dado sempre muito mais valor às suas fêmeas.

Hipatia disse...

Pois, também conheço uma história dessas. Não com uma amiga minha, antes com os pais dessa minha amiga (mas eu sempre achei que, quando se casaram, o fizeram porque, há data, não havia alternativa). Mas a coisa até se compôs e a miúda nem saiu traumatizada. Aliás, conviveu perfeitamente com a homossexualidade do pai, a guarda dos miúdos ficou partilhada pelos pais quando se divorciaram e teve o pai sempre presente. E até saiu heterossexual, já viste? Não era suposto a "anormalidade" do pai ter condenado a minha amiga a uma série de traumas? Pois não foi!