2009-02-11

Geografia Limitada

.«Há um aparecer que é próprio deste mundo. Muito amiúde, há sonhos. Por vezes deve retirar-se a tela para a cama e mostrar os corpos que se amam. Por vezes devem mostrar-se as pontes e as aldeias, as torres e os miradouros, os barcos e as carroças, os personagens nas suas moradas e com os seus animais domésticos. Por vezes é suficiente a bruma ou a montanha. Por vezes uma árvore que se inclina sob as rajadas do vento é suficiente. Por vezes a noite é suficiente, e não o sonho que torna presente à alma aquilo que lhe falta ou que perdeu.»

in "Terraço em Roma", Pascal Quignard


Penso no meu Norte e no quanto sou pertença desta terra, como a trago inscrita na alma, como se enche de surpresas e de espantos no mapa mental da minha geografia limitada.

Mais do que as igrejas a enfeitarem os cimos das serras, ou as penedias transformadas para a oração, ou o granito talhado, talvez a comunhão mais profunda se faça no meio das serras frondosas, engalanadas de vida. Sou, verdadeiramente, pó e ao pó voltarei. Mas também sou seiva e luz coalhada e brisa fresca e margens de rios frescos e impolutos. Sou como a estrada perdida, bordejada de campos e vinhas que, por trás de cada curva, insinua mais um espanto. Sou como as estrelas que se voltam a ver e o luar novo que nada alumia. Ou como as barreiras amuralhadas que escondem casas brancas e ruas limpas, rasgadas apenas pelo vento norte e que fazem ainda frente a um inimigo que já não há, enquanto os canhões silenciosos se cobrem de musgo e, por entre as pedras das flecheiras, nascem pequenas flores amarelas.

Sou esta terra alegre, verde e quente. Sou velha como as pedras de que herdei a história no sangue. Sou como a brisa e a água, frescas e sempre presentes. Ou aqueles dias em que o calor se desprende dos sabores, da malga de vinho verde tinto, da boroa e dos rojões. Ou as estradas marginais onde nos perdemos até encontrar um pequeno riacho cantante, sombreado ainda de carvalhos frondosos, com resquícios do visgo druídico e da mátria feita deusa de carnes fartas, férteis.

Sou o verde do minifúndio em pousio, a erva doce e perfumada. É em camas de urze que guardo os sonhos e por isso sonho esta terra, amo esta terra, deixo que ela me ame de volta e seja testemunha silenciosa dos amores onde me perco.

E enquanto tiver esta terra não preciso que, em sonhos, me mostrem o que ainda não perdi.



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Mais um desafio "Ministerial".

5 comentários:

Anónimo disse...

Muito bonito, poético, sentido... Hei-de voltar para o ler com a merecida atenção. :)

Hipatia disse...

Obrigada, Deep :)

Maria Arvore disse...

Nem um nico de sul que tu vestes mesmo o norte como a tua bússola. :)E é incrível a forma como te conseguiste descrever como paisagem. :)

Hipatia disse...

Sou deste Norte e não há nada a fazer. E trago-o entranhado, o que me parece definitivo :)

Anónimo disse...

Mais Vozes

muito decidida no final, a contrariar a última frase da citação.
gostei muito!
fabulosa | | Email | Homepage | 02.11.09 - 5:47 pm | #

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Achei que precisava ser contrariada

'brigada!
Hipatia | | Email | Homepage | 02.11.09 - 7:49 pm | #