2025-11-18

MANUEL JOÃO VIEIRA E A PRESIDÊNCIA: UMA ODE AO ABSURDO NACIONAL

(ou como pôr bigode na República sem pedir licença)

Portugal acordou com a notícia de que Manuel João Vieira voltou a anunciar a sua candidatura a Presidente da República, o que confirma aquilo que todos já suspeitávamos: a democracia portuguesa está finalmente madura o suficiente para ser cuidada por um homem que sabe, com igual mestria, cantar o amor, fritar sinapses e empunhar um fato de lantejoulas com a mesma dignidade com que outros empunham a Constituição.

Os corredores do poder estremeceram. Em Belém, diz-se que o silêncio foi tão pesado que até as estátuas tossiram. No Parlamento, pelo contrário, vários deputados terão sido vistos a googlar “como se sobrevive a um Presidente que canta?”. Nada de novo: a classe política, perante a cultura, costuma experimentar pânico — sobretudo quando ela surge equipada com guitarra, bigode e convicção.

Vieira, entretanto, apresentou o que descreve como o seu “programa presidencial provisório, sujeito a improviso permanente”, que inclui medidas inovadoras como:

A criação de um Ministério da Sátira e da Autoironia, encarregado de verificar se os políticos sabem rir de si próprios (spoiler: não sabem).

A substituição temporária da tradicional mensagem de Ano Novo por um concerto de jazz-punk minimalista, para testar a resistência emocional da nação.

A obrigatoriedade de todos os candidatos a cargos públicos provarem que conseguem pintar um quadro abstrato sem que pareça um acidente cromático.

Nos cafés, há quem diga que isto de ter Manuel João Vieira como candidato é a prova definitiva de que Portugal é um país surrealista mesmo quando não quer ser. Outros afirmam que “entre o caos calculado e o tédio solene, venha o caos ao menos com música”. Há ainda quem não tenha percebido bem, mas esteja a favor só porque ouviu dizer que pode haver concertos gratuitos.

A verdade é que, numa República onde a política anda muitas vezes a caminhar com os sapatos trocados, Vieira surge como aquele amigo excêntrico que aparece de repente à porta com um bolo esquisito e diz: “Vamos animar isto”. E, sinceramente, já não era sem tempo.

Se ganhar? Ninguém sabe.
Se perder? Também ninguém perde nada.
Se animar? Ah, isso anima de certeza.

E talvez seja isso, afinal, que o país anda a pedir: um abanão no sistema, um acorde diferente, uma gargalhada que atravesse as paredes de mármore do Estado e as obrigue a vibrar.

2025-11-17

Chefes


Há três tipos de chefes que transformam o trabalho num território hostil: o incompetente, o omisso e o perigoso.

O incompetente abre crateras no caminho sem perceber que está a cavar. Sorri, confiante, enquanto enterra a equipa em decisões absurdas. É destruição por ignorância — a mais previsível e, paradoxalmente, a mais difícil de evitar.

O omisso não destrói; deixa apodrecer. Observa o caos de longe, quieto, como quem assiste a um incêndio e decide que é melhor não incomodar os bombeiros. Nada é tão devastador quanto a ausência de quem deveria responder.

E o perigoso… esse sabe o que faz. Alimenta-se do risco, empurra a equipa para o abismo e chama-lhe estratégia. A imprudência dele tem dentes.

Quando estes três coexistem - às vezes na mesma pessoa -, o ambiente não implode de imediato, vai-se desfazendo, devagar, como uma estrutura abandonada. Até que, um dia, a equipa percebe que não está a trabalhar: está a sobreviver.

2025-11-13

Cabelos brancos

Os cabelos grisalhos deixaram de ser sinal de descuido ou envelhecimento e tornaram-se símbolo de autenticidade. Cada fio prateado carrega histórias, experiências e a liberdade de ser quem se é — sem tintas, sem disfarces. No espelho, o reflexo ganha nova luz, um brilho próprio que vem da aceitação. Adotar os grisalhos é um acto de coragem, mas também de amor-próprio. É abraçar o tempo, não como inimigo, mas como parte do que nos torna únicos. Afinal, a beleza verdadeira não está na cor do cabelo e sim na confiança que o acompanha.

2025-11-12

Quem tem amigos não morre à míngua

Há quem diga que a amizade é coisa simples — um café, umas gargalhadas e uns apupos, uma mensagem fora de horas. Mentira. A amizade é engenharia fina, alquimia rara, pão quente saído do forno da vida.

Porque, convenhamos, viver é um desporto radical. E sem amigos, a queda é livre. Mas quem tem os seus pares por perto — mesmo que longe — nunca desaba de vez. Pode tropeçar, pode reclamar do mundo, pode até pensar em mudar de planeta, mas alguém há de aparecer com uma frase torta, um meme duvidoso ou um “bora?” salvador.

Amigo é o tipo de gente que entende o silêncio sem precisar de legendas. É aquele que não te deixa morrer à míngua nem quando o inventário de esperança está no fim da validade.

E não se trata só de dividir o último pedaço de pizza (embora isso conte pontos). É saber que há braços invisíveis a segurar a corda quando o coração escorrega.

Porque, no fundo, “quem tem amigos não morre à míngua” quer dizer isso mesmo: não há miséria possível quando se é rico de gente boa. E, cá entre nós, é esse o verdadeiro tesouro — um que não se guarda no banco, mas na alma.

2025-11-11

Arbitragem

A arbitragem em Portugal vive aquele estado curioso em que todos garantem que está péssima, mas cada um acha que está péssima por motivos opostos. Os árbitros juram que fazem o possível, os clubes juram que eles fazem o impossível e o VAR aparece apenas para confirmar que a tecnologia também sabe gerar confusão com elegância.

No relvado, cada decisão vira tese de doutoramento, com repetições de todos os ângulos menos aquele que realmente interessa. Fora dele, dirigentes discutem como quem disputa o último pastel de nata — com convicção, pouca lógica e muito açúcar e canela por cima.

No meio disto, diz-se que a solução está “em melhorar a comunicação”. O problema é que, quando finalmente comunicam, ninguém acredita neles. A crise mantém-se, inflamada, circular, quase artística. E Portugal segue, semanalmente, a viver o seu desporto favorito: reclamar do árbitro, mesmo quando o jogo ainda nem começou.

2025-11-09

Maus sapatos

Um par de sapatos maus é sempre mais eloquente do que parece. Fingem elegância, mas carregam uma vocação dramática que faria tremer qualquer palco: apertam onde ninguém pediu, deslizam quando tudo exige firmeza e, no auge da ousadia, estalam como se anunciassem os nossos segredos. Caminhar com eles é negociar tréguas breves com cada esquina. E seguimos tropeçando com graça estudada, como quem aprende a rir da própria escolha duvidosa. É que, afinal, são muito giros!

2025-11-08

Sobrevivência

A rosa de Jericó é um desses enigmas que o deserto inventa para provar que nada permanece morto o suficiente. Fechada em si, parece apenas um punhado de raízes crispadas, uma lembrança sem água. Mas basta um fio de humidade para que a planta desdobre o seu gesto antigo e volte a abrir, lenta e teimosa, como se recusasse o fim. Há quem a use como talismã, quem nela procure promessas de renascimento. Eu apenas a observo, essa pequena teologia vegetal, ensinando que a sobrevivência às vezes não é mais do que saber esperar pela próxima chuva.

2025-11-07

Sinusite

A sinusite é aquela visita inconveniente que ninguém convida, mas que aparece mesmo assim, trazendo mala, cuia e um congestionamento digno de um feriado prolongado. De repente, a tua cabeça tranforma-se numa câmara de eco onde cada espirro ressoa como um trovão. O simples acto de respirar passa a desporto radical, digno de medalha. E, claro, o nariz decide praticar a sua impressionante habilidade de alternar entre “completamente entupido” e “escorrendo como uma fonte”, sempre no pior momento. No fim, resta apenas a esperança de que este hóspede indesejado se canse rápido e vá atormentar outra morada. É que já me tem ocupada há mais de três semanas!

2025-11-06

Domingo à semana

Os condutores azelhas são uma fauna própria, espécie que prolifera sempre que o semáforo fica verde. Arrancam como se perseguidos por fantasmas, travam como se tivessem visto o fim do mundo e usam piscas apenas por acidente. No trânsito, transformam cada rotunda num ritual misterioso, onde só eles conhecem as regras e mesmo assim mal. Observo-os como criaturas que navegam o asfalto com a elegância de um pato manco, certos de que a estrada é deles e de que todos os outros estão claramente enganados. E fujo! 

2025-11-04

Ventania

Há dias em que o vento não sopra — grita. Vem rasgando o silêncio das janelas mal fechadas, entrando em nós como quem procura abrigo.

A ventania remexe papéis, despenteia os cabelos, e, num gesto só, arranca o que ainda fingíamos segurar.

É assim que o ar se faz espelho:
revela o que precisa ir, o que insiste em ficar e o que já partiu há muito, mas ainda faz barulho cá dentro.

2025-11-02

Os meus mortos

Os meus mortos vivem comigo. Às vezes sentam-se à mesa, em silêncio, a escutar o rumor dos dias que continuam sem eles. Trazem-me memórias como quem oferece flores colhidas no tempo. Não pedem nada, apenas presença. Falam através das sombras, dos cheiros antigos, das canções que insisto em repetir. Aprendi a não temer o que não volta, apenas a acolher o que permanece. Porque os meus mortos não partiram: transformaram-se em voz, em gesto, em brisa. E sei que a eternidade possível passa por um pequeno exercício que, cada um de nós, pode fazer à sua maneira: lembrando.

2025-11-01

Dia de Todos os Santos

Há uma serenidade discreta no dia de hoje. As ruas parecem falar mais baixo, como se soubessem que o calendário pede respeito e memória. O Dia de Todos os Santos é uma pausa silenciosa — um convite a pensar nos que vieram antes, nos que vivem em nós através de gestos, cheiros, lembranças. Não é luto, é gratidão. É um sopro de eternidade no meio da pressa. Talvez a santidade esteja nisto mesmo: nas pequenas bondades que deixamos pelo caminho, nas presenças invisíveis que continuam a iluminar os nossos dias. Hoje, o tempo dobra-se em reverência.

2025-10-31

🎃 Três Vozes para a Noite de Halloween

Há noites que não pertencem inteiramente ao calendário. O Halloween é uma delas — uma dobra luminosa entre o medo e o riso, onde as sombras se tornam matéria de poesia e o escuro pede tradução.

Estas três vozes nasceram dessa travessia: a leve, a inquieta e a que fica entre as duas — a metade da noite.


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🌕 1. Entre abóboras e luar

para quem ainda acredita que o escuro também sabe sorrir

Há um riso doce espalhado no ar — uma gargalhada de criança misturada com o cheiro de folhas molhadas. O vento brinca nos cabelos e as luzes piscam como quem piscasse o olho à noite. É Halloween, mas não há medo. Há um certo encantamento em fingir ser outro por algumas horas, em esconder o rosto e, ao mesmo tempo, revelar o que sempre quisemos ser.

As casas brilham, os degraus ganham passos apressados e, entre “doces ou travessuras”, há um fio de ternura que une todos — quem dá, quem recebe, quem observa da janela com uma caneca quente nas mãos.

Porque talvez o Halloween não seja sobre o susto, mas sobre o riso que nasce do susto. Sobre a coragem de brincar com o escuro. De acender uma pequena vela dentro da abóbora e deixá-la brilhar, mesmo que só por esta noite.


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🌑 2. O que permanece depois do riso

para quem sabe que os fantasmas também moram por dentro

Depois que os risos cessam, depois que as velas se apagam, fica um silêncio estranho. Um silêncio cheio. As máscaras, pousadas sobre a mesa, parecem observar-nos de volta. Há um resquício de algo — um frio que não vem do vento.

Talvez seja isso que o Halloween tenta lembrar: que os fantasmas não estão fora, estão dentro. Nas memórias que evitamos, nos nomes que não dizemos, nos gestos que ficaram por fazer.

Entre os doces esquecidos e o eco distante de passos, há algo que persiste. Algo que olha connosco para o espelho e pergunta, baixinho:
“E tu, de que é que te disfarças quando o mundo adormece?”


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🕯️ 3. A metade da noite

para quem atravessa o escuro e regressa inteiro

Há noites que não são escuras nem claras — apenas suspensas. O Halloween é uma delas. Uma dobra no tempo onde tudo parece respirar mais devagar: o som dos passos, o lume das velas, até o próprio pensamento.

Talvez por isso esta noite tenha um nome. Porque é preciso dar nome ao que não sabemos explicar.

Entre o riso e o medo há uma fronteira ténue — e é ali que gosto de ficar. No instante em que a criança finge ser monstro e o adulto finge não acreditar. Nesse espaço onde o faz-de-conta se transforma em espelho, e o escuro se revela cúmplice.

Penso nas máscaras — todas elas. As de papel, as de tinta, as que usamos para parecer fortes. Penso que talvez o Halloween seja apenas uma desculpa antiga para as retirarmos, uma de cada vez, e ver o que sobra.

Porque há sempre algo que sobra. Um olhar, um arrepio, uma lembrança que se senta ao nosso lado.

E quando a meia-noite passa e o silêncio volta a encher a casa, não é o medo que fica — é o brilho. Um brilho estranho, quase terno, de quem atravessou o escuro e regressou inteiro.


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💭 Notas do blogue:
Há festas que são espelhos e há espelhos que são portais. O Halloween talvez seja ambos. Uma noite para rir do medo e ouvir o que ele sussurra quando o riso cessa.

2025-09-05

Glória

Vivia em Portugal sob os frágeis céus da esperança: um homem ucraniano refugiado da guerra. Chegou ao nosso país buscando paz, mas na curva abrupta da Calçada da Glória, um falhanço mecânico da máquina centenária, cancelou vidas: ele, entre as dezasseis vítimas, foi uma delas. Agora, resta o silêncio do luto e o gosto amargo de saber que, mesmo fugindo do horror, ele encontrou aqui a sua última despedida.

2025-08-20

Segredos

O horizonte sussurra segredos que o vento espalha antes que o sol se atreva a pôr-se. A luz treme nos cantos da manhã, como se tivesse medo de ir embora. O silêncio estica-se, habitado pelos ecos do que fomos antes de perder o medo de sentir. Sentimo-nos frágeis, mas a fragilidade tem o peso da verdade — pesa como saudade e voa como um suspiro. Há beleza na hesitação, na linha tênue entre o que desejamos e o que ousamos exprimir. E nessa tênue fronteira, encontramos o que resta de nós: uma alma pronta para ir além.

2025-08-16

Paranóia

A paranóia é quando a cadeira te observa de volta.

E há um zumbido, sempre um zumbido, que começa pequeno, como se o silêncio estivesse engasgado, mas instala-se logo atrás dos olhos.

É o frigorífico que pisca; o vizinho que tosse duas vezes às 3h14; são os passos que sabem o nosso nome, mesmo quando ninguém nos chamou.

É o mundo que te olha de lado, a rua que te olha de lado, o poste que finge que não viu.

E atravessas com a sensação de que alguém tomou nota da forma como pisas no chão, ou que há uma câmera de filmar no espelho.

Segues com os olhos nas costas, os ouvidos nas paredes e a alma na ponta dos dedos, tateando o invisível.

Lembras-te de quando era só medo. Agora é mais — é o sistema.

A paranóia é uma fé torta.



2025-06-25

Dos anjos e afins

Céu de Verão

O céu de verão é um bicho inquieto. Acorda cedo, já azul e espalhado, como se tivesse pressa de existir. Às vezes vem limpo, outras riscado por fiapos de nuvens que não sabem se ficam ou vão. O sol, senhor absoluto, escorre dourado nas esquinas, nas peles, nos silêncios abafados da tarde. Tem dias em que o céu inventa tempestades do nada, só para lembrar que manda. E quando escurece, não cessa — vira palco de estrelas que piscam sem ordem, sem vergonha. O céu de verão não pede licença. Ele chega, ocupa, enquanto nos esforcamos para caber dentro dele. Não é apenas um telhado azul, é um portal para a alma, um lembrete de que a magia ainda existe, se soubermos onde procurar.

2025-06-18

Crepúsculo


A noite vinha devagar, como quem não quer interromper a última palavra do dia. O céu, bordado de lilases e roxos densos, deixava entrever uma luz tímida no horizonte — talvez o suspiro derradeiro do sol, talvez só o silêncio a ganhar forma. As árvores, em contraluz, guardavam o segredo da tarde que passou, imóveis como sentinelas de um tempo que já não volta. E tudo parecia suspenso, como se o mundo prendesse a respiração antes de se entregar ao escuro. Nessa hora, em que a beleza não grita, mas sussurra, a alma aprende a escutar o que nunca ousou dizer.

2025-05-29

Palavras

Todas as palavras cabem no meu dicionário. Até o vernáculo. Pobre de mim se me impusesse apenas palavras politicamente correctas. Depois, como ia conseguir descrever os dias fdp?

2025-05-25

Fragilidade

A fragilidade é um sopro que se instala nos interstícios do quotidiano.  É no gesto trémulo, no olhar que hesita, no silêncio que se prolonga.  É a pele que se arrepia ao toque da memória, o coração que perde passo perante o eco de uma ausência.  É a palavra não dita, o abraço que ficou por dar, o adeus sussurrado entre lágrimas contidas.  É a certeza de que somos finitos, de que o tempo escorre por entre os dedos como areia.  É a beleza do efémero, a poesia do instante que se desfaz.  Na fragilidade, encontramos a nossa humanidade, a nossa capacidade de sentir, de amar, de ser.  E é nesse reconhecimento que reside a nossa força. 

2025-05-13

Quando o silêncio é uma arma

Na Alemanha nazi, o silêncio era cuidadosamente arquitetado. Não era ausência de som, mas ausência de rastros. 

A 7 de dezembro de 1941, uma diretiva assinada por Hitler instituiu a política Nacht und Nebel — Noite e Névoa. Um nome poético para um programa de terror. 

Destinada aos opositores políticos nos territórios ocupados, o objetivo desta política não era apenas punir, mas apagar, fazer desaparecer os corpos, os nomes, os sinais, transformar seres humanos em espectros.

Era mais do que uma estratégia repressiva. Era uma engenharia do esquecimento.

2025-05-11

Desesperança

Desesperança é quando até o amanhã perde o gosto e já ninguém mais escreve cartas para o futuro. O futuro, aliás, transformou-se numa gaveta fechada. A chave? Alguém a perdeu. Talvez tenha sido eu. Ou todos nós, juntos, num silêncio bem ensaiado.

Acordar tem sido um gesto automático: não há mais café que aqueça o peito e desfaça as sombras. As notícias repetem a desgraça com palavras novas, enquanto o público finge surpresa.

Há uma pausa que ninguém preenche, um vácuo entre o que se quer e o que se tem. O mundo continua, claro, mas não convida, enquato as janelas permanecem abertas, mas só entra poeira e mosquitos.

A esperança era uma vela, mas hoje é só cera fria, moldada em formas de desistência. E mesmo assim há quem continue soprando o nada — por vício, talvez.

Mas ainda há um resto, um fiapo, não de esperança, mas de teimosia, de seguir mesmo assim, com os pés no barro e os olhos embaciados, porque às vezes continuar é a única forma de resistência.

2025-05-09

Dia da Europa

Num qualquer 8 de Maio, vi um homem perder o comboio e foi como se perdesse o continente inteiro.

Tinha nos olhos uma pátria desfeita, um idioma sem lugar no mapa. À volta dele, migrantes e medo. Um pouco mais ao lado, uma guerra a acontecer.

Falam de unidade, de paz, de valores comuns.

Mas eu, que sou feita de fronteiras e de ausências, só encontro na Europa de hoje um silêncio onde os velhos hinos dormem, um vinil riscado a repetir promessas que ninguém se lembra de cumprir, uma ausência de ser burocrática e caduca onde os sonhos vão morrer.

Hoje é Dia da Europa.

Na minha rua, ninguém festeja. As andorinhas voltaram, como sempre, sem precisar de passaporte.