2009-02-12

E agora, podemos ler o Mundo?




-O que é ler o Mundo, Avô?
-É entender-lhe os sinais espalhados um pouco por todo o lado.
-Mas todos os lados não cabem aqui no nosso pequeno quintal...Se calhar teremos que procurar noutro lado?...
-Pois...
- Já sei! Encontramo-lo no computador do mano ou na televisão.
- Ou...talvez num livro... – disse o Avô.

E de repente, ler deixou de ser uma tarefa apenas lúdica, trazendo consigo laivos de um prazer primordial que só o nosso silêncio interior pode descrever.
Ler passou a ser luta, necessidade de viver, factor de integração e arma secreta numa ascensão social muda, lenta mas imparável.
Ler abriu horizontes de imagens a pessoas atentas às palavras que no seu recolhimento iam construindo filmes rolando a toda a velocidade, projectados no córtex da imaginação, onde o autor é só uma espécie de argumentista e pretexto para um guião.
Ler largou a gargalhada e o gozo no entendimento do jogo ou na subtileza da piada e, sem darmos por nada, ler deixou também a alma desgraçada, encalhada como um barco num recife de tristeza.
E ler transportou consigo outras emoções e lembranças, da menina das tranças e dos cheiros do pão-de-ló da Avó que já não ouve mas lê as receitas de óculos encavalitados sobre o nariz adunco.
Eu li! Eu li os recados da mãe para não me esquecer do pão. E li a ordem do patrão num ofício amarelado. Eu vi-me atrapalhado com as pequenas letras dos contratos que me deixam farto... e lá entendi a bula porque me doía um dente. E enviei mails a toda a gente anunciando como um rei o nascimento do Vicente e todos os amigos leram alegremente nos ecrãs de plasma digital este pequeno dia de Natal.
E para dizer a verdade eu estou farto de ler os testes psicotécnicos, não os vou preencher! E o professor que me desculpe mas substituí
o exame por um poema. Não rima! Mas é sincero: Tas a topar meu? A coisa que eu mais gosto de ler são as mensagens da chavala, ali preto no branco em Times Romano Bold para encher a minha vida de Amor logo pela manhã. E quando o meu filho nascer eu quero que saiba ler a palavra Pai, pois muito tenho lido sobre ela, sem a entender.
E Sónia na solidão da cela, lendo um retrato que não é seu, mas de um homem, Dorien, tão igual a outros que conheceu, tão vaidoso...vai treze: tão violento afinal...
Mas porque é que até no sexo devemos saber ler nas entrelinhas?
Eu agora só quero que me leias um livro em voz alta e me ames depois pela noite dentro, pois hoje é fim de semana!
E sempre aquele sabor a leite com chocolate vindo da minha infância, cada vez que me lembro do corsário escarlate da colecção Emílio Salgari: juro que li mas estava com febre, privilégio de quem se encontra confinado com um livro ao seu lado por imposição da maleita.
“E eles nem sabem nem sonham que o sonho comanda a vida e sempre um homem sonha o mundo pula e avança nos braços de uma criança.” Yô! O Gedeão mora lá no fundo do bairro, batendo sílabas sempre entre dentes, sedentos de poesia numa ilha feita gente. É uma forma de leitura bem entendida pelos residentes...
E ler impele as crioulas “mais velhas”cansadas subindo a calçada do Moinho para aprender a ler o português na Biblioteca e trazem seus lenços garridos de badia amarrando promessas no cabelo crespo.
E que dizer daquela criança que entretanto descobriu que os livros contêm histórias, mais interessantes que as do televisor, substituindo a Avó que de cansada adormecera, embalada nos contos que em tempos escutara?
E aqueles outros que são tão estranhos que nos parecem tão familiares? Sim, os deficientes. Quem disse que as suas mentes não lêem um mundo normal?
E eu que tenho que mediar o livro com o poder tranquilo dos afectos, adivinhando pelo brilho do olhar o futuro leitor parado à minha frente.
Ler trouxe consigo o escrever, afirmação gráfica de vontades por estabelecer, fidelidade a vozes que surgem lá do fundo sem explicação, ditando um novo parágrafo ou uma opinião.
E leio o romper do sol em cada dia que renasço só para entender este Mundo onde agora me acho.

-Avô?... Podemos falar agora sobre o Mundo?

Miguel Horta
Janeiro de 2009

5 comentários:

Hipatia disse...

Está tão lindinho!

Conhecer as palavras talvez seja a melhor das chaves e, em muitos dias, pode ser a própria fechadura. Até na forma como, por ela e ao espreitar, podemos ver um bravo e diferente mundo.

Maria Arvore disse...

Ler o mundo é entendê-lo?... :)E então, o mundo é feito pelas leituras de cada um?... :)

Claire-Françoise Fressynet disse...

Olá Gaivina, que boa surpresa, vou imprimir para a tua pequena leitora:-)

Pois é Hip a reaparição do Gaivina, mesmo fixe

Hipatia disse...

A ver se ele reaprende o caminho, Claire :D

Gaivina disse...

Olá pessoal!
Vocês sabem que sou uma ave de arribação,,,,,