2008-10-14

Crise


©Francesco Clementei, House of Cards


Lembro sempre, da minha adolescência, os "filhos família" a quem os papás deram tudo o que não tinham tido na própria adolescência: as motas, as férias da Páscoa no Algarve, as roupas de marca, os óculos, as botas, os estudos em qualquer externato bem pago, depois a carta, o carro, o curso superior, o estatuto, sei lá! Miúdos mimados com tempo e dinheiro a mais entre mãos. E uma ânsia de experimentar tudo, viver tudo demasiado depressa e com excessivas facilidades. E resultou nesta geração a quem deram agora as rédeas do Mundo de bandeja, fácil e a crédito, sem grandes metas, ou grandes sonhos, ou sequer uma pequena utopia, para além de qualquer desejo material.

A minha geração não se lembra realmente de tempos difíceis. As dificuldades reais são sempre culpa dos outros, os tais que não lhe dão o que merece. Mas vai buscar com à vontade o subsídio de desemprego ou rendimento de inserção. É a geração que nem pensou em poupar para comprar casa e pôs os pais a pedir por ela o crédito bonificado da casinha que foi trocada por uma casinha melhor cinco anos depois. Ou o carro de gama alta, houvesse ou não dinheiro para o pagar. Ou as férias a crédito. Ou o crédito a la minute à distância de um telefonema.

É a geração que faz compras por enfado, não por necessidade. Que quer estar na moda, mesmo que nem a moda entenda ou sequer se sinta coagida pela força do marketing a ter o que não precisa. A geração que culpa sempre todos, menos a ela própria, pelos desvarios.

A minha geração estava nos cueiros quando foi o choque petrolífero nos anos 70; estava na escola a viver à conta dos papás quando o FMI veio meter o dedo nas aselhices de uma economia que ainda não sabia se queria virar à direita ou à esquerda e só se enterrava cada vez mais. É a geração que estava a acabar o secundário ou no início do curso na universidade quando a bolsa crashou em finais de 80. É a geração do dinheiro a rodos a entrar pelos fundos comunitários, da democratização do acesso ao ensino superior e do início das reformas acéfalas e sucessivas de todos os graus do ensino. É a geração que viu a falência do socialismo de estado e viu cair as diferentes fachadas do comunismo e por isso santificou o mercado. É a geração que se convenceu que é livre e não entende que a liberdade também implica compromissos e sacrifícios. É a geração que acha que a cidadania é palavrão e a entregou a uns quantos para que a exerçam a mandato e esquece que a cidadania é feita por todos nós. É a geração que enche a boca para falar de democracia e, no entanto, se recusa a ir votar ou sequer entende realmente o que é o pluralismo e direitos iguais para quem é diferente. É a geração que desbaratou as ideologias, que não as quer, não as entende. É a geração sem compromissos, tirando a dívida que tem de ser paga ao dia certo. É a geração que tem tudo, menos norte. E nunca viveu realmente a crise. Por isso, a crise caiu-lhe em cima da cabeça e desta vez não vai sobreviver nadando de costas.

O paradigma está a mudar. A mudança não é brusca, mas feita de duros golpes. E a minha geração está à toa. Deram-lhe o Mundo e meia dúzia de regras, desde a mão invisível ao Estado Providência. Não lhe disseram que ia ter de se esforçar. À minha geração nunca foi pedido qualquer esforço. A minha geração nunca quis ter o encargo de ser uma geração. E nunca lhe disseram que ia ser difícil e que, um dia, a normalidade ficaria virada do avesso. E que fosse, finalmente, da responsabilidade desta geração ausente criar as regras novas do Mundo que vai continuar a ser. Para alem do dólar, da Europa, da globalização. Para além de qualquer abstracto. Mas com um qualquer abstracto que esta geração perdeu, tirando a forma abstracta como culpa tudo, menos a ela mesma, desde o preço da gasolina ao sacana do banco que lhe emprestou o dinheiro para a casa e o carro acima do que podia, ou para as férias na neve, mais as férias em Natal, ou o plasma, ou tudo o mais que tem de ter, mesmo que não precise.

E quando já não há os pais para lhe avalisar os créditos bonificados que também já não há, ou que nem entende a taxa de juro que não pára de aumentar, então a geração trauliteira e esbanjadora chora-se e lamenta-se e estica daqui e estica dali e vai levando à espera de melhores dias, culpando tudo e todos, menos a sua falta de juízo e a sua ganância e os restos da abundância empacotada na arrecadação.

22 comentários:

Anónimo disse...

Clap clap clap. Tu quando estás com a fúria, escreves uns posts absolutamente de vénia. :)

Hipatia disse...

Ora ai está uma coisa que sempre me deixou curiosa: esta preferência de quem me lê pelos meus ataques de mau feitio :D

Mas, sim, estava a ver os Prós e Contras e a pensar como a culpa é sempre dos outros, quer se diga claramente quem são os outros ou se faça como o Salgado que não disse o nome do Lehmans Brothers "para não baixar o tom da discussão". Isto faz-me azia, pá!
E, depois, como nunca fui coerente nem quero, venho para aqui e escrevo de rajada destas coisas, onde levam todos pela mesma medida e também não digo os nomes de ninguém. Por incoerência mas também por convicção: somos uma geração muito poucochinha e mal habituada, não te parece? Não me admira nada que a crise nos tenha apanhado em contra-mão :(

Anónimo disse...

Completamente de acordo, a culpa ser sempre dos outros tira-me do sério mesmo.
(eu também gosto dos outros, mas estes posts - que às vezes até são em comento em blog alheio ;)) adoro-os, que é que queres?)

Hipatia disse...

LOL

Aquele outro trouxe para aqui depois de levar um puxão de orelhas de quem me está próximo por andar a fazer arruaça em blogue alheio :D E sugeri que o apagassem no seu formato comentário. As minhas birras - a Vanus diz sempre que eu tenho a mania de pôr o circo a arder - precisam de algum açaimo de vez em quando.

Quanto a este post, acho que é a soma de tudo e mais alguma coisa. E se vejo mais um pelintra qualquer que nem tem dinheiro para mandar cantar um cego por culpa própria a dar uma entrevista a culpar alguém que não ele, ou lhe vou às fuças, ou escrevo mais um destes :/

Bartolomeu disse...

Não sei se estavas ca fúria ;) mas foi sem dúvida um momento de lucidez e clarividência, excelentemente bem escrito, como alias é apanágio teu. É claro que reduziste os elementos à sua mínima expressão, a qual não foge à sua real dimensão. Contudo as sociedades possuem uma boia de salvação que está atada às consciências, à coexistência do resto da geração anterior e ao princípio da geração precedente o que faz com que a geração que está na sua verdadeira pujança, arque com o peso de 3 responsabilidades, as quais por sua vez se concentram numa única... "a sustentabilidade da espécie".
E lá vamos, contunuando a desejar.

I. disse...

Concordo e não concordo com este post. (que está bem bom, já agora)

Vejo aí a nossa geração, mas não me revejo. É que eu lembro-me muito bem da crise dos anos 80, do FMI e da OPEP, de não haver batatas nem leite, do açambarcamento, de a minha mãe ir ao supermercado com os dois filhos pela mão porque havia um racionamento (não oficial, claro) de um pacote de leite por pessoa. Bebi muito leite em pó, comi muita fécula de batata, bife era um pitéu, comer fora uma festa, ir ao cinema era no Natal, e não havia roupinha de marca. Os primeiros jeans de marca que tive comprei-os com o meu dinheiro, ganho num part time. E era esta a vida da classe média, pá.

Nos anos 90 mudou muita coisa, começou a chegar o dinheiro dos fundos europeus, e o pessoal começou a gastar à larga em putas e vinho verde. A malta que teve a sua infância nesta década foi educada a consumir à doida, e hoje não prescinde (porque não quer nem sabe) de nada.

É verdade que há pessoal da nossa idade que se habituou mal, e já não se lembra dos anos 80. Esses não vão sobreviver bem, que não sabem poupar nem cortar no supérfluo. Aliás, para eles, o supérfluo já é essencial. Conheço muitos, acredita, mesmo na minha família e bem próximos. E nem toda a gente tem mentalidade de velhota como eu, que acredito em ter um pé de meia para dias piores, e sei que tenho que cortar aqui e ali, quanto mais não seja por uma questão de princípio e disciplina. Custa, mas faz-se. Mas muitos preferem ligar para a credifin ou cofidis, claro.

E o que me custa, me dói a sério, é que é quem tem uma vida regrada que vai agora pagar a insolvência destas bestas todas. Que ganham menos que eu mas têm melhores tvs, melhores carros, melhores roupas e o raio que os parta. E isto não é inveja, que eu até acho que dou muito bom destino ao meu dinheirito, e não preciso de um plasma para ser feliz (já viajar, é outra história :D mas só viajo se tiver guito).

Olha, pá, sei lá. Desculpa lá o testamento, mas isto chateia-me que nem sabes.

I. disse...

"E se vejo mais um pelintra qualquer que nem tem dinheiro para mandar cantar um cego por culpa própria a dar uma entrevista a culpar alguém que não ele, ou lhe vou às fuças, ou escrevo mais um destes :/"

É só vires ao meu xervixo ou ao xervixo de me mate. Passas o dia a aviar indigentes vestidos a crédito, queres? É que eu e me mate já não os podemos ver, pá.

Carlos Gil disse...

embora tenhamos uma meia-geração de diferença (cálculo meu, e em meu prejuízo etário) identifico-me com o desabafo. por isso pergunto: posso linkar?

Anónimo disse...

Cara Hipatia,

Excelente. Presumo que sejamos da mesma geração - sou de 71 - e vi do muito do que descreves. Mas também concordo com o que diz a I., foram várias as realidades de determinado período. Lembro-me bem dos tempos difíceis.

Toze disse...

É destes "gritos" de rajada que eu gosto. E deixo-te um conselho; vai-lhes às fuças, e escreve mais um destes :))))

Carlos Gil disse...

"como quem cala consente"... tá linkado ;)

(tou a brincar :))) - excepção ao link: já tá no tasco)

Hipatia disse...

Obviamente que generalizei em traço grosso, Bartolomeu. Só o facto de encher a tecla para falar em geração implica isso mesmo. Se é certo que dentro desta minha geração cabem todas as excepções, também não me parece errado pensar que também estão lá todos estes de que falo. E, sabes, eu não sei realmente se muita gente da minha idade sabe lidar com responsabilidades. Há uns dias, 6ª feira talvez, entrei num daqueles ninhos de bílis que são as caixas de comentários de notícias de alguns pasquins com edição on-line. E, por ali abaixo, o mesmo gajo vomitada repetidamente o mesmo, variando ligeiramente a forma: que ia entregar a casa ao ladrão do Banco, que o Banco lhe emprestou a 3 e agora quer o dobro, que a culpa é do governo (às tantas nem votou) que ele só tenha dívidas, que a gasolina é um chulanço (mas não larga o carro alta cilindrada), que, que, que. Só nunca disse que a culpa era dele. E a responsabilidade também. E esta atitude repete-se onde quer que vás. Não por quem se preveniu e pôs algum de lado. No pior cenário, sempre o podem levar para debaixo do colchão. Antes por quem já não tinha onde cair morto e, ainda assim, quis continuar a ter para parecer o que não era. Esse enfezado mental é o ser típico desta minha geração.

Hipatia disse...

I, já não é a primeira vez que falamos as duas sobre isto e sabes que a minha realidade é e sempre foi muito semelhante a essa tua. Mas também tenho desses no “xervixo” e na rua à minha volta. E esses às vezes é que me parecem ser a maioria. Depois, uma coisa é viver a crise com os pais – que foram educados para poupadinhos, quisessem ou não – a fazerem render os quebrados; e no outro extremo está a nossa, que quando começou a ganhar dinheiro era tudo sempre a abrir, tudo fácil. E é nesse sentido que digo que esta crise os apanhou na mão, que é a primeira vez que têm realmente de contar os quebrados e que é deles que se pede acção, reacção e, mais complicado ainda, uma qualquer forma de sair do buraco. Só não tenho é grandes esperanças em relação a muitos desses que nos cercam e que, sem pão agora, ralham, ralham, sem razão.

Hipatia disse...

Podes, Carlos :)

(só cheguei agora a casa e já vi que fui voluntária à força; obrigada)

Hipatia disse...

Somos mesmo da mesma colheita, Miguel. E, sim, eu também lembro bem de não haver dinheiro e de ser preciso apertar o cinto. Mas o que não me parece é que muitos o recordem e, depois, na nossa idade, a verdade é que quem segurou a crise foi a geração dos nossos pais. Podemos ter sofrido as consequências, mas não éramos nós a fazer as contas. E os nossos pais sabiam fazer contas bem melhor do que nós. Nós – e este nós não particulariza ninguém nem quer – quando sentimos que está a faltar o guito, pegamos no telefone e pedimos mais um creditozito. Depois logo se vê como pagar ou se pagar. E já deixou de ser vergonha não pagar as dívidas. Mas esta gente de vida empenhada, se não conseguir pagar, obviamente que culpa quem emprestou dinheiro, ou a publicidade que lhes oferece sempre coisas novas e melhores, ou as roupas da nova estação que lhes entram pelos olhos dentro e é preciso estar na moda, ou o importante que é gastar o que não se tem para passar 8 dias descansados numa praia qualquer (desde que bem distante e na moda) rodeados de dezenas de cromos iguais.

Hipatia disse...

LOL

Vou mas é mudar o disco e pôr-te a ti a dar-nos tango, Tozé ;-)

Erecteu disse...

Ganda post, no sentido figurado e literal.

Onde é qu'eu tava nos 80'?
Ah! Estudava e trabalhava, amamentava três filhos e por incrivel que pareça até era feliz, no meio dos amigos que tinha. (isto conjugado no passado não fica lá muito bem).
"A crise vem de muito longe", pega-se pelos cornos e de caras ou... finta-se, brinca-se mas arrear, não. Sobre ela criei hoje uma uma etiqueta "crises" provavelmente outros textos lhe juntarei.
Agora já sei, após os prós-encontrões... zuka, venho medir a acidez :) ;)
Bjs

Hipatia disse...

Alto e pára o baile! Explica-me lá muito bem - oh que eu sou ruiva, ie, qualquer coisa perto do loira - como é que davas a mama aos filhos?

:D

(nem sempre tenho pachorra para ver a coisa, exactamente porque nem sempre me apetece a acidez que me provoca)

Maria Arvore disse...

Espectacular caracterização da geração do tudo nos cai do céu e medrosa que o céu lhes caia na cabeça. :)))

O que me lixa é que nas gerações seguintes se continua a educar os jovens e as criancinhas para não serem responsáveis por nada. Talvez o medo de que quem é responsável decide por si próprio pese na manutenção do «no pasa nada». ;)

Hipatia disse...

A geração que vem depois da nossa não terá outra hipótese senão agir. Assusta-me muito mais os anos que ainda faltam para esses novos tomarem a vez :(

Teresa disse...

Obrigada por cada uma das palavras que escreveu e que tive o prazer de ler! Tenho apenas 33 anos, mas entendo cada uma das linhas que escreveu e concordo em tudo! Deu-me a sensação de me estar a ouvir, quando dou grandes secas aos amigos ( que me ouvem apenas por simpatia, não por aceitarem tal discurso...). é isso mesmo! Que se cultivem sentimentos de auto-responsabilidade sobre os acontecimentos que nos assolam a vida! Haja coragem para assumir os erros! Haja humildade suficiente para apontar o dedo a si próprio! O governo começa no comportamento individual!Que sejamos conscientes da nossa condição! Que se propague a cultura do Ser em detrimento do Parecer!

Hipatia disse...

Obrigada eu, Teresa, por tão gentis palavras. E olhe que eu ainda não cheguei aos 40. Falta pouco, mas ainda não cheguei lá :))