2008-10-21

Distopia

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«As pessoas do nosso atemorável mundo novo, bem aconchegadas nos seus blocos de apartamentos neo-georgianos, olharão com temor reverencial para o século que agora acabou (…) sem a menor tentação de emularem a ousadia daqueles que aboliram todas as regras e tentaram principiar do zero. Ao contrário, enterrar-se-ão ainda mais fundo nas suas poltronas neo-Luís-Qualquer-Coisa, fazendo rodopiar ociosamente a informação pela Internet, matando o tempo como as matronas vitorianas com o seu croché, o tricô, a espiguilha, a renda e os bordados, satisfeitos por viverem naquilo que ficará conhecido como o Século Sonolento ou a Ressaca do Século XX.»

Tom Wolfe, Hooking Up – Um Mundo Americano



Ora cá vamos nós! O que espero do futuro? Quase nada. Acho que o futuro terá um tom tipo "Stange Days", que até se passava na viragem do século passado para este (de que já se esgotou quase uma década) e, como se provou, não foi data que fizesse acabar o Mundo, nem os vírus informáticos fizeram parar a bolsa, nem os elevadores ou os nossos computadores pessoais, nem caíram aviões, nem nada de extraordinário aconteceu. Bateu a meia-noite e foram para casa. Bem, quase que foram para casa, que ainda tiveram tempo para o beijinho, remendar os arranhões e prestar declarações à polícia.

Suponho que espero um pouco mais do mesmo, num século que me parece ter nascido cansado dos exageros do século XX e em tom estafado tentará seguir em frente. Para já, prevejo que seja um século chato, em tom de retrocesso. Desde que Nietzche decretou que Deus estava morto, mais nenhuma verdade insofismável fez sentido. E agora todas as outras verdades tornam-se também questionáveis, desde as doutrinas políticas e económicas moribundas ou já enterradas, passando pelos grandes paradigmas que agora se questionam também, com a própria lógica da evolução darwiniana e as suas subdoutrinas em confronto com retrocessos medrosos em relação a releituras de uma suposta palavra divina que afinal também já não existe, ou não faz sentido que exista, tirando para quem quer continuar a controlar o mundo, controlando as pessoas e os seus valores. E a esperança vai-se com o dízimo para o pastor e prega-se o sermão como se se vendessem livros porta a porta.

Depois também não espero milagres contra os grandes males. Já não. O tempo em que tinha um cartaz pendurado na parede do quarto adolescente com a imagem do cogumelo atómico e a frase "will they ever learn?" ou o tempo em que achava que a Humanidade era capaz de deixar de se auto-destruir, passou com as probabilidades cada vez mais óbvias de um dia destes ter o mar debaixo da janela e só porque estou no 7º andar. Ou o tempo em que até acreditava que, se todos quiséssemos, se todos fizéssemos um esforço, então na Europa deixaria de se destruir comida e em África mais ninguém passaria forme. Ou que as focas bebés deixariam de ser mortas à paulada. Ou que as baleias iam ser salvas.

Não, o meu futuro está tingido de sem-esperança, tirando aquela mais evidente que me lembra diariamente que o Homem se habitua a tudo; ou que até o retrocesso para padrões que seriam bastardos de qualquer resquício de civilidade nem é sequer questionável, está já ai e, pior, já nos estamos a habituar a ele.

No séc. XXI – ou pelo menos nas décadas deste século em que terei possibilidades de viver - o Futuro já não será algo de excitante e o Progresso já não estará garantido. Já ninguém tentará correr rapidamente em direcção ao Mundo de Amanhã, porque o dia seguinte, se não for apenas mais do mesmo, estará antes vestido de medo e de frustração. E as guerras aparentemente enormes do passado serão travestidas cada vez mais de guerrilhas indistintas, criminosas e sujas, como se o cogumelo atómico só tivesse dado lugar às bombas sujas fabricadas com o refugo do século que acabou. E um dia destes, quando já estivermos todos bem enfiados na web, sempre em rede e cada vez mais sozinhos, talvez já seja obrigatório ter implantado o chip que permita a um qualquer Grande Ditador que prometeu a Salvação Eterna controlar as mentes e as vontades.

E ainda poderão vir as neurociências decretar o fim da fé do Homem, roubando-o por fim da alma ao substitui-la por uma qualquer versão de computador com pouco espaço disponível no disco e os programas desactualizados. Bless the mink for they will inherit the world passará a ser chavão. E suponho que em inglês, para que os "mink" sejam também "lazy" e, além do mais, possam acreditar que não têm culpa nenhuma. Não seremos mais como uma folha em branco à nascença. Nada disso! Dentro de nós tudo será mensurável por quem nos escarafuncha a mente e esmiúça os genes. E se está nos genes não temos culpa. E se não tivermos culpa, também não teremos a responsabilidade de fazer diferente. E ficaremos quietinhos, rebanhos a pastar atrás de um qualquer ecrã, com um chip bem implantado por baixo do couro cabeludo, à espera que alguém nos diga o que fazer e não fazer, o que é proibido ou permitido, o que é aceitável e o que não é, o que comer e onde comer, onde e quando foder, desde que um foder asséptico e que não seja subversivo, nem dê demasiado prazer, nem permita que as DST transtornem o orçamento dos serviços nacionais de saúde, se ainda continuar a haver disso.

Tom Wolfe disse um dia que este seria um Século Sonolento de ressaca do século XX. Lamento não concordar. Este parece prometer ser um século caótico, de medos e de retrocessos. E as pessoas não andarão sonolentas; andarão apenas comatosas. Só que até os rebanhos um dia se assustam e desatam a correr todos na mesma direcção alucinada. E, no rescaldo da passagem, não sobra normalmente mais do que destruição e pó revolvido.

E o meu futuro será também um pouco disso tudo, tirando que sou bem capaz de acabar viciada em "trips" de filmes feitos com a vida dos outros e enfiadas por uma qualquer engenhoca electrónica directamente no meu córtex cerebral. E talvez vire cada novo ano desse futuro a dar um beijinho, remendar as feridas e a prestar declarações à ASAE. Habituada ao dia à dia, sem esperança para além do minuto seguinte, sonhando ainda com os tempos que já passaram há muito em que acreditava que a minha geração ia mudar o Mundo e seria capaz da prometaica empresa de o fazer melhor. E o dia seguirá, mesmo que o mar me venha lamber a janela. E talvez compre um barquinho e vá passear para longe, se ainda houver um pôr-do-sol decente do outro lado de uma gigantesca nuvem de poluição ou se o buraco do ozono não nos tiver já roubado até esse pequeno prazer. E o rebanho irá comigo, ou eu com ele. Ou então apenas veremos todos essas cenas idílicas on-line ou mesmo "uploadadas" para dentro da nossa cabeça.





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Quando a Maria Árvore me pediu para escrever este texto, não encontrei o livro onde estava a citação e optei por outra. Hoje dei com ela, obviamente à procura de algo que não tinha nada a ver. Mas aproveito para republicar o texto com a citação que, desde sempre, me apeteceu deixar-lhe e à qual me refiro no corpo do texto.

E talvez porque um lençol depois do lençol abaixo fosse mesmo o que este blogue estava a precisar para afugentar um qualquer leitor tresmalhado da Catarina. Nunca vão acreditar que estavas certa ao meter-me na listinha dos dardos, lol! (obrigado, Cat!)

5 comentários:

Maria Arvore disse...

Será este globalmente um século de caos e retrocessos sociais e económicos, em que se paralelamente se acentua a individualidade de cada um, por solidão e por ostentação que foi neste século que nasceram os blogues. ;)
Mas como sou utópica para acreditar que a esperança é a última a morrer, ainda acredito que teremos saudades de estar ao vivo uns com os outros, se não nos esquecermos de olhar para as pessoas que connosco se cruzam todos os dias. :)

Anónimo disse...

Claro que acreditam, que eu não sou de não escrever o que acho. :)

Hipatia disse...

Sim, até os blogues são um sinónimo disso. Antigamente, juntávamo-nos nos cafés e as coisas falavam-se olhos nos olhos. Hoje, alguns de nós tentam fazê-lo por aqui, mantendo as caixas de comentários e as referências mútuas. Mas até por aqui às vezes vai sendo difícil manter os diálogos. No fundo, somos uns neo-qualquer coisa, como as cadeiras de que fala Tom Wolfe. E pouco mais do que isso. Talvez por isso sejamos tão bons a debitar e encontrar informação e cada vez piores a debatê-la e partilhá-la. E, no entanto, suponho que tenhamos sempre saudades de gargalhadas, ou piscares de olho, presenciais. Ou do calor humano que, por mais que se tente, nunca se consegue transmitir realmente por um teclado. E, também por isso, preservo por entre várias ausências, a vida e as amizades para além da net, ainda que reconhecendo como esta mesma net me agarrou, se tornou vício e tomadora de tempo. Só que é ainda no real que tenho as minhas âncoras.

Hipatia disse...

Eu sei, Catarina. Não era a isso que me referia. Era aos lençóis, que são uma boa maneira de afugentar leituras quando há tanta falta de tempo para ler e apreender tudo o que gostamos de ler nos outros. Era à minha postura, cada vez menos activa, mais virada para mim, que me referia. Eu posso não ter tempo para escrever um post - e depois saem-me de rajada 4000 palavras - mas tenho sempre tempo para ler quem gosto. E já li o teu texto sobre o porquê de mantermos as leituras de certos blogues e deixarmos cair tantos outros. Concordo contigo: nunca fui de andar atrás da literatura nos blogues, mas de pessoas que comigo partilhassem a necessidade de escrever, comunicar e partilhar alguma coisa. E deve ser por isso que, mesmo com vontade de fechar as caixas de comentários por sentir que não tenho em muitos dias capacidade para responder como me merecem os meus comentadores - que são os melhores do mundo, não penses que são só os teus - me recuso a fazê-lo. Se quisesse uma reacção diferida a qualquer dislate que digo, então arranjava alguma bibliografia, escrevia um artigo e tratava de o publicar. Por aqui nunca foi isso; o que procurei nos blogues que leio também nunca foi isso.

Anónimo disse...

Mais Vozes

Engraçado, a semana passada estive quase a ver confirmados os meus piores receios quanto ao enceramento do clube que frequento desde que me conheço . Nos últimos 3 anos, rara foi a semana em que não me atrevi a adivinhar o funeral do local onde cresci Hoje , como que por milagre, sinto que acabou o ciclo de inactividade da rapaziada aqui do bairro, sinto vontade de manter um espaço e de trabalhar em prol de algo que é nosso . bastou o aparecimento de uma cabecinha nova para q todo um clima de pessimismo se transformasse em vontade de por de novo a velha maquina a funcionar. Contas feitas a minha vontade de revitalizar e de não deixar morrer um espaço fervilhava dentro de mais meia dúzia de cabeças .
Em 2 dias retiraram-se balcões limpou-se o q não era limpo há décadas arranjou-se dinheiro para pagar as dividas mais urgentes e surgiram soluções de rentabilização económica para o local.

A semana passada se me contassem esta historia escangalhava-me a rir
frogas | 10.22.08 - 1:55 am | #

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Froguinhas, não consigo convencer-te a vir ao Bessa? E que tal se transformássemos essa tua comunidade em sócios do meu Boavista?

(é bom saber que as coisas acontecem quando há vontade; e que há comunidades que ainda mexem, ainda estão vivas)
Hipatia | 10.22.08 - 2:15 pm | #