2008-10-20

Numb




Este post está atrasado uns dias. Era para ter sido publicado a 17, a propósito do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Mas não tive tempo o que, às tantas, é sintomático do que quero dizer: vamos ficando sem tempo para as causas, enquanto olhamos mais para o nosso umbigo, o nosso bem-estar. Não posso falar por todos, mas eu fui perdendo com os anos a capacidade para a utopia. E isso dói-me e agride-me. Faz-me mal esta desesperança. Mas a realidade não se compadece dos sonhos em muitos dias.

Todos temos dificuldades em lidar com grandes números, não é? O nosso cérebro parece estar mais preparado para a dor particularizada, ou algo assim. Eu não consigo imaginar quantos são "milhões de mortos". Mas, se falar de cento e poucos, consigo imaginá-los em filinha e, às tantas, até inventar uma cara para cada um.

Corpos sem rosto são demasiado anónimos. Demasiado mesmo. São números, claro. E calamidades também. Mas um rosto dá sempre origem a uma identificação. Uma identificação entre o nós e o outro, tanta vez já só cadáver, ou já só fotografia.

É óbvio que haver uma câmara apontada pode dar ainda mais força a qualquer maluco, como o terrorismo organizado já sobejamente nos provou. Mas a falta dessa câmara faz muitas vezes com que as coisas aconteçam à mesma, só que sem ninguém saber. Por outro lado, a profusão de tragédias nos noticiários fazem já com que apenas mudemos de canal: depois de um dia de cão, só queremos lamber as próprias feridas. E haja ou não câmara, as tragédias passam a ser esquecidas, até que aparece uma qualquer que, pela sua enormidade, nos faz questionar a nossa indiferença. Depois, passamos à frente e seguimos entorpecidos. Até à próxima. Tudo o que de permeio pensamos em fazer ou dizer, fica mais uma vez de lado quando toca o despertador na manhã seguinte.

No fundo, acho que é tudo uma questão da forma como algumas coisas ainda nos atingem; da forma como outras nos deixam demasiado embrutecidos. E, a muitos níveis, a idade e os desenganos fizeram-me perder ingenuidade e capacidade de reacção, até mesmo empatia.

As tragédias que todos os dias acontecem no mundo são imensas, horrorosas, inimagináveis. Mas apenas algumas delas conseguem impregnar-se na nossa pele e causam ainda uma vontade de reacção. Com a actual crise e o esforço que todos fazemos para sobreviver no nosso Mundo de abundância, essa reacção será ainda mais ténue. E os pobres entre os pobres ficarão mais esfaimados ainda se tivermos que escolher entre o pão deles ou biocombustível que nos faça andar o carro. Em alturas de crise generalizada, até para se ser pobre é preciso sorte.

6 comentários:

Maria Arvore disse...

Este teu «grito de alerta» mostra que ainda tens utopia. ;) Que ainda é possível fazer alguma coisa à nossa beira. :) Nem que seja escrever.

Não podemos apagar que sejam sempre os mais pobres a ficar mais pobres mas podemos combater para que não se criem mais pobres...

Hipatia disse...

Mas escrever num blogue anónimo e anódino como este não enche a boca a ninguém, não é? E, tirando aquela fatia que no meu IRS destino religiosamente a algumas associações, que faço eu todos os dias, tirando sobreviver sem prestar grande atenção a quem está pior do que eu? Acho que a última vez que me envolvi real e activamente numa causa ainda estava o Guterres no poleiro :(

I. disse...

Vai-me custar horrores dizer isto, mas cá vai: tou na mesma. O pior é que sinto que a perda da capacidade de sonhar utopias é mesmo desgaste, coisa da idade, e que se calhar alguma razão há em dizer-se "dar lugar aos novos". Por outro lado, e porque ainda me sinto demasiado nova para encostar à box, ainda persisto, teimosamente, em procurar não utopias mas soluções. Outra forma (mais madura, quero eu acreditar), de fazer o mesmo.
Mas acredito, tenho que acreditar, que ainda faço qualquer coisa pelas minhas causas. Não de uma forma activa (nunca fui muito do género activista, confesso) mas "pensativa".Continuo atenta e a refilar. Não me deixo dormir.
E tenho uma sobrinha que já ando a contaminar, que a miúda pensa que se farta, se lhe dermos com que pensar.Lol.

(desde que fui ao Ground 0 consigo imaginar 3000 mortos. aquilo é enorme, cristo, nunca tinha imaginado, um quarteirão inteiro. e se imaginarmos a altura...ui)

Claire-Françoise Fressynet disse...

Optei pelos actos, minimizar a minha própria pegada.
(estava no intervalo que acabou, vou pintar, é que se me ponho a tentar escrever não saio daqui nem amanhã) gosto te ler e fica o beijinho.

Hipatia disse...

Nunca estive no Ground Zero, mas tive a experiência da visita a um campo de concentração. Ainda assim, não consigo imaginar cada pessoa, cada cara, com a precisão do número pequeno. A dimensão da hecatombe abate-se sobre nós como enormidade, não como identificação.

E eu resisto em perder as causas, tu sabes. Mas às vezes sinto-me a perder essa batalha, por mais que refile.

Hipatia disse...

Eu tenho pé pequenino :D

Mas percebo-te. Até nessa necessidade de ir pintar, coisa que não sei fazer e para a qual não tenho qualquer jeito.

Beijo, Claire